Entre famas e cronópios, mediação com Warat nos leva à literatura
Por Alexandre Morais da Rosa
Ele influenciou toda uma geração de gente aturdida à procura de um mestre. Este lugar de oráculo, todavia, nunca foi por ele ocupado, embora muitos assim o quisessem. Ao não aceitar guiar, apontar o caminho, foi criticado, negado histericamente, ainda que mais tarde (quase) todos tenham se rendido à postura manifestamente ética de Luis Alberto Warat: apostar na capacidade de enunciação do sujeito. Teria sido mais fácil, especialmente para os que cultivam um “narcisismo pedante”, próprio da academia, ter fundado uma “seita jurídica” qualquer, na sua modalidade mais contemporânea, a saber, uma “seita jurídica da salvação”. Mas não. Sabia Warat que não há salvação concedida, completude prometida, pois isto é empulhação imaginária. E o lugar dos salvadores sempre é o do canalha. Restou, sempre, a aposta. A aposta no sujeito, na sua autenticidade, carnavalizando as certezas.
Foi uma convivência
intransitiva. Depois de um longo luto, enfim, começo a conseguir falar e
apresentar à nova geração sua obra. Uma dívida comigo mesmo. Luis Alberto Warat
se foi para ficar. Com ele era impossível não fazer o impensável. Um camaleão
de sentidos que apostava no sujeito e, nos últimos tempos, na mediação. Trabalhei
com Warat e Juan Carlos Vezzula, nos anos 2000. Desde então acredito na
mediação. Não em qualquer mediação, mas na mediação laica.
Talvez
uma das chaves para entender a proposta de Warat sobre mediação possa estar na
leitura cruzada, ou seja, como metáfora, da literatura, recurso utilizado por
ele diversas vezes. Por isso a invocação de Cortazar e seu fantástico livro História
de Cronópios e Famas, justamente para indicar duas posições
diferentes, a saber, os famas como sujeitos matemáticos, estatísticos,
ordenados, loucos por protocolos de atuação. Já os cronópios,
por seu turno, gente que aceita o convite da vida, do inesperado e de bom grado
a surpresa da faticidade, sem querer impor um padrão de vida. A opção entre famas e cronópios, no caso da
mediação, dá a dimensão do que se passa. Embora o discurso seja de aceitar o
outro e a violência que ele sempre traz consigo, muitas e muitas vezes o
deslizar para “consertar” o sujeito, a relação estabelecida entre os
envolvidos, faz com que os famas-mediadores neguem o fundamento da mediação,
alienadamente. Assim, parece, com acerto, que somente uma postura de
mediador-cronópio pode promover uma mediação sem salvação transcendente, já que
vivem o mundo poeticamente.
É
que não se pode fazer uma leitura linear do conflito, nem o entender como uma
imagem. Ele é sempre a narrativa parcial de uma realidade sustentada por um
sujeito que enuncia e que precisa de uma fusão de horizontes (Gadamer) num
espaço compartilhado, desprovido, ademais, de verdade verdadeira/fundante.
A realidade entendida como limite simbólico, portanto, da ordem do singular,
impede que a leitura da realidade única possa se estabelecer, como de regra
acontece no plano do Direito. Há um para-além do dito, no qual o sentido de uma
possibilidade de interlocução e responsabilização, por básico, demandam um
procedimento específico para produção de verdades, sem transcendência. Uma
mediação laica, assim, parece ser o desafio neste início de milênio. Essa
possibilidade não implica na renúncia aos mitos fundadores de qualquer sistema,
mas justamente em reconhecer que a transcendência opera no real, ou seja, em
algo que somente se pode tocar pelas bordas, enfim, no qual a palavra irá
fundar, por definição, mas que não se pode querer salvar ninguém.
Mais cedo ou mais tarde
se percebe que o conflito e sua manutenção ocupam o lugar de um remédio
imaginário contra o desalento constitutivo do sujeito, no medo que o desamparo
de uma solidão aumente pelo rompimento do vínculo que um processo judicial
proporciona, situação mais do que apurada no campo do Direito de Família, em
que as separações, divórcios, etc. nunca terminam, justamente porque os
sujeitos não podem dar cabo ao que lhes sustenta.... e a resposta estatal
padrão, fundamentada na razão, é manca. Sempre. Há um para além do autos, no
silêncio, no semi-dito, que condiciona o sentido do que virá depois...
No campo da mediação se
constrói um conto com os materiais significantes disponíveis, sem que já se
antecipe o final. Difere de uma decisão judicial que acredita ingenuamente dar
a razão para alguma das partes (José Bolzan de Morais e Fabiana Spengler).
Rompe-se com o padrão moderno de racionalidade, enfim, muda-se de rumo, como
apontam João Salm e Rafael Mendonça. Aceita-se a parcialidade de um acontecer.
Não há um projeto do que pode ser adequado para os envolvidos. Na singularidade
que surgirão, por certo, a procela de significantes que serão dispostos, em
algo próximo a uma “bricolage”, em que a garantia decorre da montagem conjunta
dos concernidos.
Com
efeito, o que se dá, de regra, são atores sociais que amam o Direito, a
mediação, mas odeiam gente, contato, proximidade, como fala Luis Alberto Warat
(O Ofício do Mediador).
Amam as pessoas à distância, nos seus lugares, desde que os deixem em paz. A
paz muitas vezes do discurso consciente contracena com o desprezo, a
intolerância em relação ao outro. O encontro é similar a lógica do “amor
cortês”, no sentido de evitar o encontro com a “coisa”, enfim, como no “amor
cortês” é um falso amor, aqui, no caso da mediação por protocolos, é um falso
respeito. Por detrás do discurso esconde-se, não raro, uma intolerância
primordial. Evitar-se o encontro ao máximo, com medo do trauma que daí advém,
sempre. E quando acontece o encontro, por exemplo, com a violência, o conflito,
a intolerância impera soberana. Por isso que Lacan (Ética da Psicanálise), ao afirmar que o real existe, mas é impossível, refere-se ao
axioma: “ama o teu próximo”, porque ele para ser amado deve permanecer a certa
distância, sem encontro, porque quando isto se dá, o trauma acontece. É sobre
este trauma que muitas vezes a Mediação é chamada a se manifestar. A sociedade
vive numa convivência à distância, um contato sem contato, e os contatos são
traumáticos por definição.
Daí o perigo dos
discursos de “Paz por Paz”, alienados da dimensão humana, na esperança
metafísica — e muitas vezes religiosa — de uma perenidade de humanos tornados
em anjos, imaginariamente. Esse é um projeto inalcançável e que fomenta — muito
de boa-fé — as atividades sociais totalitárias. Procura-se, neste pensar, uma
dessubjetivação, com o apagamento da dimensão de negatividade do sujeito, de
sua pulsão de morte (Freud). E os Famas de sempre procuram impor um padrão de
subserviência alienada ao desejo, tornando os mediados em marionetes de um
discurso opressivo e sem sentido. Procura-se, enfim, eliminar o sujeito humano
que molesta.
Aceitar
o sujeito é admitir que age sem o saber, movido por uma estrutura subjetiva
singular, própria, embalada pelo princípio de morte, na
eterna tentação de existir. Pode ser que ali, no conflito, uma tentativa de o
sujeito se fazer ver, aparecer. A abordagem tradicional busca calar esta voz,
não deixar o sujeito dizer de si, de suas motivações, previamente etiquetadas e
formatadas. Há um sujeito no conflito. E a mediação possibilita que ele se faça
ver, dando-lhe a palavra, sempre. É com a palavra, com a voz, que o sujeito
pode aparecer. A violência em nome da lei, imposta, simplesmente, realimenta
uma estrutura de irresignação que (re)volta, mais e mais.
Na
mediação se pretende mostrar que não se pode gozar tudo, pois há um impossível
a se gozar em sociedade. Busca-se, ao inverso do discurso padrão, construir
laço social, e não a imposição de um respeito incondicionalkantiano que, por básico, opera na lógica: não
discuta, cumpra. Buscar que o sujeito enuncie seu discurso e não despeje
enunciados, como diz Lebrun, ocupando um lugar e uma função. A aposta que se
faz, neste contexto, pois, é a de que reconhecer o outro, a alteridade, na
medida em que se descobre sujeito. Dito de outra forma, aceitar o outro sob a
forma de uma relação conflituosa, para somente assim ocorre laço social. Do
contrário, há intolerância. Sempre. Zizek (Arriesgar lo imposible:
Conversaciones com Glyn Daly) afirma que é preciso de alguma maneira aceitar a
violência, porque a tolerância à distância, própria do modelo liberal, é muito
mais cínica. Enfim, arriscar o impossível: aceitar e se relacionar com o outro
singular, no que a mediação, via cronópios, pode ser um sendero.
No caso de Warat, eu
tinha para com ele o que Cortazar chamava de “amizade felina”, no sentido de
que ele sabia quem eu era e eu sabia quem era Warat. Não há mais o que falar.
Fomos amigos e tchau, cada um para o seu lado. Como hoje e a cada dia que a
falta se instaura. De qualquer forma, com a sedução que ele opera, vale a
descrição de Pedro Juan Gutiérrez, o qual, por certo, descreve Warat:
“Sou um sedutor. Eu sei.
Assim como existem os alcoólicos irrecuperáveis, os jogadores, os viciados em
cafeína, em nicotina, em maconha, os cleptomaníacos etcétera, sou um viciado em
sedução. Às vezes o anjinho que tenho dentro de mim tenta me controlar e diz
assim: ‘Não seja tão filho-da-p..., Luisito... Não percebe que está fazendo
estas mulheres sofrerem?’. Mas aí aparece o diabinho e o contradiz: ‘Vá em
frente. Elas ficam felizes assim, nem que seja só por um tempo. E você também
fica feliz. Não se sinta culpado. É um vício. Sei que a sedução é um vício
igual a outro qualquer. E não existe nenhum Sedutores Anônimos. Se existisse,
talvez pudessem fazer algo por mim. Se bem que não tenho tanta certeza.
Seguramente eu inventaria pretextos para não comparecer a suas sessões e ter de
ficar lá na caradura na frente de todo o mundo, botar a mão na Bíblia e dizer
serenamente: ‘Meu nome é Luis Alberto Warat. Sou um sedutor. E faz hoje vinte e
sete dias que não seduzo ninguém.”
Que a Mediação seduza,
famas e cronópios, mas que se adote uma postura poética do mundo, sempre. O
mundo ficou menos poético sem Warat.
PS:
Vale registrar que são 100 semanas da coluna Diário de Classe, na parceria de
André Karam Trindade, Rafael Tomaz de Oliveira e Lenio Luiz Streck. Obrigado
aos leitores e à ConJur.
Fuente: http://www.conjur.com.br/
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