Por Márcio Berclaz
Luis Alberto Warat (1941/2010) fazia a diferença. O saudoso Warat sabia realmente das coisas. Ele sabia, por exemplo, que, antes de criticar Hans Kelsen (1881/1973), era preciso conhecê-lo (e bem!), livre das “paixões” e, sobretudo, das más e apressadas interpretações, das falsas e banalizadas imagens de “aparência”. Warat certamente tomou da clássica “teoria pura do direito” de Kelsen “resultados essenciais”, inclusive para, partindo dela, porém apostando na linguagem e na capacidade de enunciação do sujeito, produzir a sua crítica transformadora para além do “senso comum teórico”, categoria última que, como bem diz Lenio Streck, nada mais é do que “a aposta na renúncia do prazer de pensar”.
Como bem me disse certa feita o
sensível Professor argentino Leopoldo Fidyka – aluno, amigo e intenso
interlocutor intelectual e socioafetivo de Warat nos seus últimos anos de vida,
na seleção de juristas do time de futebol de Warat o camisa número um, o
goleiro, seria Hans Kelsen. Não por acaso Warat inventariou trinta
ideias-chave sobre Kelsen, tanto que quis deixá-lo ao alcance geral ao preparar
curso de trinta horas que chegou a ministrar em instituições com a Universidade
Federal de Goiás, situada em espaço e sede de uma atuante “Casa Warat”.
Para superar um obstáculo é preciso saber que ele existe e o que ele
efetivamente representa. A travessia pela logicidade do dogmatismo kelseniano
não permite criticá-lo, desconstruí-lo, banhá-lo de realidade ou transcedê-lo
se não se souber definir no que ele consiste e quais seriam suas limitações.
No pensamento de Kelsen, assim como
cada campo do conhecimento tem as suas normas, com o direito, não seria
diferente. O direito também seria formado e realizado como um conjunto de
normas positivas (contendo proposições), normas essas definidas por formas,
dinâmicas e estáticas, dentre as quais a “norma fundamental gnosiológica”, uma
condição imaginária de significação, uma produção de sentido e definição, um
esquema que estrutura toda uma teoria de interpretação para os acontecimentos
fáticos, um pressuposto. O direito, para Kelsen, “é um sistema de normas
que regulam o comportamento humano” como uma ordem marcada pelo sabor da
coerção. O critério para dizer o direito, aliás, seria formal, portanto,
assumidamente afastado da vida real e ponto final. Por isso, era preciso
“elevar a Jurisprudência à altura de uma genuína ciência”, que, firme numa
crença racionalista, ancorada no pressuposto de que há uma exigência de se
conhecer, busca desesperadamente autonomia, objetividade e exatidão.
O direito como um saber puro e
unívoco, ficto, ideológico, homogêneo e objetivo. Uma teoria pura do saber e
não do direito puro. Uma pureza na observação com um princípio metodológico
fundamental: um método puro de conhecer o direito para enfrentar os
jusnaturalistas livre da experiência e suas condições e valorações, fossem elas
de qualquer ordem: políticas, religiosas, sociológicas, ideológicas, históricas
ou mesmo morais.
Warat sabia que Kelsen trabalhou o
tema do direito e da moral de modo diferente do que costuma se repetir sem
muito cuidado. Uma coisa é a ordem social da moral; outra a ordem social
decorrente do direito. Para Kelsen, não se trata de negar o valor, mas de
reconhecer que este é relativo e não absoluto, escapando ao domínio da ciência
jurídica, portanto. Para o jurista positivista de Viena, diante da
impossibilidade de uma moral ser tida como absoluta, a relação entre moral e
direito precisa ser de forma, não de conteúdo. O que preocupava Kelsen era
saber o que era a ciência jurídica em sentido estrito, como o direito poderia
ser conhecido, pensado e produzido cientificamente desde um ponto de vista
normativo. Para Kelsen, a ciência do direito precisava se preocupar com o seu
conhecimento e descrição, do contrário “ciência” propriamente dita não seria. A
questão da ciência do direito era essencialmente epistemológica, de mero
“reconhecimento significativo”, não devendo, supostamente, na pretensão de
Kelsen, contemplar a aplicação ou debate quanto a legitimação. É uma questão de
reconhecer os limites da ciência do direito tal como Kelsen a entendia, tal
como era seu “modo de olhar”. Essa a retórica do discurso.
Direito e natureza, direito e moral,
direito e ciência, estática jurídica, dinâmica jurídica, direito e estado, o
Estado e o direito internacional e a interpretação, esses os capítulos da
“Teoria Pura do Direito”, leitura obrigatória para qualquer estudioso do
direito. Como bem diz Warat, a questão principal para Kelsen era afirmar
“a morte do saber metafísico do direito” ou a “metafísica do direito natural”
para identificar a necessidade de “uma teoria jurídica consciente de sua
especificidade” e, nas palavras de Kelsen, “alheia a toda a política”.
Segundo Kelsen, por conta das mais
variadas e opostas orientações e roupas com as quais se quis influenciar,
catalogar e vestir a teoria pura do direito (“não há qualquer orientação
política de que a teoria pura do direito não se tenha ainda tornado suspeita”),
essa seria a maior prova da sua pureza e da aspiração por uma “ciência jurídica
livre” e afastada de “elementos estranhos”, ainda que com eles eventualmente em
conexão. A pureza do direito em Kelsen passa pela compreensão e delimitação de
um objeto que se pretendia conhecer, tudo para se chegar a uma ciência que se
pretendia identificar e construir. Uma pureza metódica edificada para, como bem
afirma Warat, preservar o poder do discurso jurídico. Uma pureza que segrega a
teoria da sociologia e filosofia do jurídico e, nesse sentido, ainda mostra-se
lamentavelmente presente e incorporada como “habitus”; uma pureza que ainda
dificulta, quando não por vezes impede, que o direito seja interpelado
por outros saberes.
Pior de tudo é que, como alertava
Warat, “a teoria pura do direito encontra-se, na atualidade, ideologicamente
recuperada e inscrita na cultura jurídica dominante”, quando, na esteira de
Warat, a complexidade e densidade do mundo exige do jurista, cada vez mais, uma
“heteronímia significativa”, uma abertura a outros campos produtores de sentido
que precisam impactar o direito, sem esquecer da “realidade social”. A norma
segue sendo o fetiche que permite dissimular e iludir, ignorando uma
“ideologia” que marca seu lugar, que grita, que se faz sentir diariamente. Tudo
em nome da (im) pureza. Tudo em nome e na forma da lei. Tudo em nome de afirmar
a “ciência do direito”. Tudo em nome da manutenção do que aí está, de algo que,
definitivamente, não serve.
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).
Referências bibliográficas
KELSEN, Hans. Teoria pura do
direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
STRECK, Lenio. Compreender
direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2012.
WARAT, Luis Alberto.
CAMBRIADA, Gustavo Perez. Os quadrinhos puros do direito.
WARAT, Luis Alberto. A
pureza do poder: uma análise crítica da teoria jurídica. Florianópolis, Editora
da UFSC, 1983.
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