19 de noviembre de 2014

A (im) pureza do direito em Kelsen


A (im) pureza do direito em Kelsen


Por Márcio Berclaz


Luis Alberto Warat (1941/2010) fazia a diferença. O saudoso Warat sabia realmente das coisas. Ele sabia, por exemplo, que, antes de criticar Hans Kelsen (1881/1973), era preciso conhecê-lo (e bem!), livre das “paixões” e, sobretudo, das más e apressadas interpretações, das falsas e banalizadas imagens de “aparência”. Warat certamente tomou da clássica “teoria pura do direito” de Kelsen “resultados essenciais”, inclusive para, partindo dela, porém apostando na linguagem e na capacidade de enunciação do sujeito, produzir a sua crítica transformadora para além do “senso comum teórico”, categoria última que, como bem diz Lenio Streck, nada mais é do que “a aposta na renúncia do prazer de pensar”.
Como bem me disse certa feita o sensível Professor argentino Leopoldo Fidyka – aluno, amigo e intenso interlocutor intelectual e socioafetivo de Warat nos seus últimos anos de vida, na seleção de juristas do time de futebol de Warat o camisa número um, o goleiro,  seria Hans Kelsen. Não por acaso Warat inventariou trinta ideias-chave sobre Kelsen, tanto que quis deixá-lo ao alcance geral ao preparar curso de trinta horas que chegou a ministrar em instituições com a Universidade Federal de Goiás, situada em espaço e sede de uma atuante “Casa Warat”.  Para superar um obstáculo é preciso saber que ele existe e o que ele efetivamente representa. A travessia pela logicidade do dogmatismo kelseniano não permite criticá-lo, desconstruí-lo, banhá-lo de realidade ou transcedê-lo se não se souber definir no que ele consiste e quais seriam suas limitações.
No pensamento de Kelsen, assim como cada campo do conhecimento tem as suas normas, com o direito, não seria diferente. O direito também seria formado e realizado como um conjunto de normas positivas (contendo proposições), normas essas definidas por formas, dinâmicas e estáticas, dentre as quais a “norma fundamental gnosiológica”, uma condição imaginária de significação, uma produção de sentido e definição, um esquema que estrutura toda uma teoria de interpretação para os acontecimentos fáticos, um pressuposto.  O direito, para Kelsen, “é um sistema de normas que regulam o comportamento humano” como uma ordem marcada pelo sabor da coerção. O critério para dizer o direito, aliás,  seria formal, portanto, assumidamente afastado da vida real e ponto final. Por isso, era preciso “elevar a Jurisprudência à altura de uma genuína ciência”, que, firme numa crença racionalista, ancorada no pressuposto de que há uma exigência de se conhecer, busca desesperadamente autonomia, objetividade e exatidão.
O direito como um saber puro e unívoco, ficto, ideológico, homogêneo e objetivo. Uma teoria pura do saber e não do direito puro. Uma pureza na observação com um princípio metodológico fundamental: um método puro de conhecer o direito para enfrentar os jusnaturalistas livre da experiência e suas condições e valorações, fossem elas de qualquer ordem: políticas, religiosas, sociológicas, ideológicas, históricas ou mesmo morais.
Warat sabia que Kelsen trabalhou o tema do direito e da moral de modo diferente do que costuma se repetir sem muito cuidado.  Uma coisa é a ordem social da moral; outra a ordem social decorrente do direito. Para Kelsen, não se trata de negar o valor, mas de reconhecer que este é relativo e não absoluto, escapando ao domínio da ciência jurídica, portanto. Para o jurista positivista de Viena, diante da impossibilidade de uma moral ser tida como absoluta, a relação entre moral e direito precisa ser de forma, não de conteúdo. O que preocupava Kelsen era saber o que era a ciência jurídica em sentido estrito, como o direito poderia ser conhecido, pensado e produzido cientificamente desde um ponto de vista normativo. Para Kelsen, a ciência do direito precisava se preocupar com o seu conhecimento e descrição, do contrário “ciência” propriamente dita não seria. A questão da ciência do direito era essencialmente epistemológica, de mero “reconhecimento significativo”, não devendo, supostamente, na pretensão de Kelsen, contemplar a aplicação ou debate quanto a legitimação. É uma questão de reconhecer os limites da ciência do direito tal como Kelsen a entendia, tal como era seu “modo de olhar”. Essa a retórica do discurso.
Direito e natureza, direito e moral, direito e ciência, estática jurídica, dinâmica jurídica, direito e estado, o Estado e o direito internacional e a interpretação, esses os capítulos da “Teoria Pura do Direito”, leitura obrigatória para qualquer estudioso do direito.  Como bem diz Warat, a questão principal para Kelsen era afirmar “a morte do saber metafísico do direito” ou a “metafísica do direito natural” para identificar a necessidade de “uma teoria jurídica consciente de sua especificidade” e, nas palavras de Kelsen,  “alheia a toda a política”.
Segundo Kelsen, por conta das mais variadas e opostas orientações e roupas com as quais se quis influenciar, catalogar e vestir a teoria pura do direito (“não há qualquer orientação política de que a teoria pura do direito não se tenha ainda tornado suspeita”), essa seria a maior prova da sua pureza e da aspiração por uma “ciência jurídica livre” e afastada de “elementos estranhos”, ainda que com eles eventualmente em conexão. A pureza do direito em Kelsen passa pela compreensão e delimitação de um objeto que se pretendia conhecer, tudo para se chegar a uma ciência que se pretendia identificar e construir. Uma pureza metódica edificada para, como bem afirma Warat, preservar o poder do discurso jurídico. Uma pureza que segrega a teoria da sociologia e filosofia do jurídico e, nesse sentido, ainda mostra-se lamentavelmente presente e incorporada como “habitus”; uma pureza que ainda dificulta, quando não por vezes impede,  que o direito seja interpelado por outros saberes.
Pior de tudo é que, como alertava Warat, “a teoria pura do direito encontra-se, na atualidade, ideologicamente recuperada e inscrita na cultura jurídica dominante”, quando, na esteira de Warat, a complexidade e densidade do mundo exige do jurista, cada vez mais, uma “heteronímia significativa”, uma abertura a outros campos produtores de sentido que precisam impactar o direito, sem esquecer da “realidade social”. A norma segue sendo o fetiche que permite dissimular e iludir, ignorando uma “ideologia” que marca seu lugar, que grita, que se faz sentir diariamente. Tudo em nome da (im) pureza. Tudo em nome e na forma da lei. Tudo em nome de afirmar a “ciência do direito”. Tudo em nome da manutenção do que aí está, de algo que, definitivamente, não serve.


Márcio Berclaz
 é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br) e do Movimento do Ministério Público Democrático (www.mpd.org.br). Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013).


Referências bibliográficas
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
STRECK, Lenio. Compreender direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
WARAT, Luis Alberto. CAMBRIADA, Gustavo Perez. Os quadrinhos puros do direito.
WARAT, Luis Alberto. A pureza do poder: uma análise crítica da teoria jurídica. Florianópolis, Editora da UFSC, 1983.

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