'Vejo
esses movimentos como Maios de 68 pós-modernos'', diz Michel Maffesoli
Com mais de 20 obras publicadas no
Brasil — como “A transfiguração do político” e “A dinâmica da
violência” —, o sociólogo Michel Maffesoli vê o país como
um “laboratório” no fim dos tempos modernos e diz não ter sido surpreendido com
a eclosão das manifestações em diversas cidades brasileiras. Conhecedor do
Brasil, para onde viaja há mais de 30 anos para conferências e intercâmbios
intelectuais, Maffesoli disse que vai “dar uma passada” na
manifestação de brasileiros que ocorrerá no fim da tarde de hoje, em Paris, em
solidariedade ao movimento. Na sua opinião, manifestações como as do Brasil e
da Turquia podem ser vistas como “Maios de 68 pós-modernos”, de curta duração,
mas com marcas indeléveis.
A entrevista é publicada pelo jornal O
Globo, 22-06-2013.
Eis a entrevista.
Como o senhor analisa estes
movimentos no Brasil?
É um bom exemplo
destas sublevações pós-modernas que se desenvolvem em vários lugares. É uma
revolta bastante disseminada, que não se origina de um projeto político preciso
e programático, mas, ao contrário, propaga-se como um fogo rápido a partir de
um pequeno pretexto, como R$ 0,20 de aumento da passagem de ônibus. É algo que pode
ser comparado com o exemplo turco, onde a partir de algo anódino — construir
algo ou não num parque — se criou uma sublevação que se alastrou. Vivemos o fim
de uma época, e umas das manifestações disso é que algo cotidiano suscita um
movimento que questiona o sistema.
Para o senhor, é o fim de um modo de
se fazer política?
É o fim da política moderna. Tive
como professor na França o sociólogo Julien Freund (1921-1993),
também conhecido no Brasil, que dizia que o político é a ideia de um projeto,
de um programa, da dimensão racional, seja de esquerda ou de direita. O
objetivo programático é mobilizar energias para alcançar o fim desejado. Era a
grande ideia marxista dos sistemas socialistas do século XIX, das políticas
conservadoras etc. Vemos que há uma saturação, um tipo de indiferença, esses
jovens não se reconhecem mais num programa, num partido ou sindicato. Não é
mais programático, mas, sim, emocional. A modernidade é racional, e a
pós-modernidade é emocional. Com o que ocorre no Brasil temos uma boa
ilustração disso.
O senhor se surpreendeu pelo fato de
essas manifestações ocorrerem agora no Brasil?
Vejo o Brasil como um laboratório da
pós-modernidade. Algo assim não vejo ocorrer na França, onde
espírito, clima e intelligentsia permanecem muito racionais. Não vejo surpresa
neste tipo de explosão, forte, mesmo brutal, num país como o Brasil.
Não se trata de revolução. Como o
senhor definiria este movimento?
A palavra
“revolução” significa uma ruptura. Etimologicamente significa “revolvere” em
latim, voltar a coisas que acreditávamos superadas. Não é uma revolução no
sentido moderno do termo, como ruptura. Mas no sentido etimológico vemos voltar
essa ideia de fraternidade, de estar juntos, das tribos. Por isso o Brasil é um
país importante, porque vejo que resta essa velha ideia, que vem das culturas
ancestrais, de comunidade, de solidariedade de base. Vejo uma espécie de
ilustração da minha teoria de tribos urbanas. E, quando há um tal ajuntamento,
os políticos ficam perdidos, desamparados, porque ultrapassa suas categorias,
que permanecem programáticas. Vemos uma sublevação, um tsunami das tribos
urbanas.
As redes sociais também têm um papel
importante nessas sublevações...
Brinco dizendo que neste caso não se
deve mais fazer sociologia, mas epidemiologia, pois é algo viral. É a sinergia
do arcaico com o desenvolvimento tecnológico. Arcaico são as tribos;
desenvolvimento tecnológico, a internet. Há mobilidade graças às redes sociais.
As tribos urbanas se tornam comunidades interativas. Há essa expressão em
inglês, “flash mob” (abreviação de flash mobilization, movimentação
relâmpago). De repente surge uma mobilização que desampara as instituições.
Como não é programático, há o risco de murchar como um suflê, de forma rápida.
Mas é algo que deixa marcas.
O movimento pode degenerar?
Não se faz omelete
sem quebrar ovos. Não podemos atuar como moralistas. Mesmo que os participantes
se manifestem contra a violência, é algo que não é controlável. Não se pode
prever, mas é quase certo que haverá algum dano. Está na natureza humana,
quando ocorre algo que quebra a ordem das coisas é certo que haverá desvios.
Como compara o que ocorre no Brasil
com outros países? Teria alguma relação com Maio de 68?
Não se pode comparar com a Primavera
Árabe, a não ser pelo uso de tecnologias e redes sociais. Acho que é mais
comparável com a Turquia. Vejo esses movimentos como Maios
de 68 pós-modernos: emoção coletiva, que provoca o contágio e se
alastra de forma incontrolável. Poderá secar, mas com um verdadeiro corte, e o
depois não poderá ser como o antes.
Fuente:Jornal O Globo, 22-06-2013.
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