A Fantasia jurídica da igualdade: Democracia e direitos humanos numa pragmática da singularidade. (1992)
- II Parte-
Por Luis Alberto Warat
Desejo, poder e discurso
O poder institucional se constitui e dissemina seus efeitos, aproveitando-se das virtudes mágicas acopladas culturalmente à língua legítima.
O espaço do político, na sociedade, se forma como um entrelaçado de
relações alinhavadas discursivamente. O problema da sociedade pós-industrial se
manifesta principalmente no fato de que ela consegue estabelecer uma constelação
de estereótipos, crenças e ficções que roubam o espaço do político na
sociedade. Organiza-se um aparato de submissão obtida pela conexão direta entre
certos discursos de efeitos totêmicos e os desejos. Da micropolítica se passa,
enfim, à transpolítica. Com isto quero expressar que uma cultura
totêmico-policial mina, de modo extremamente perigoso, as bases do político na
sociedade. Aí está o começo do fim. A morte do político é a interrupção do
processo de compreensão significativa. Desta forma emerge o totalitarismo
cultural, que se instala sempre no limite do político e marca sua derrota
neutralizando toda reflexão.
Uma forma social totalitária requer um uso disciplinador das
significações . Desta forma, consegue-se encaminhar os desejos para o poder e
provocar o silêncio social, como conseqüência de uma visão de mundo
estereotipada.
Estamos diante do caso limite de segregação social. A sociabilidade se
torna inexpressiva, com protagonistas adormecidos, ilhados uns dos outros como
resultado dos efeitos castradores, dos tabus impostos pelos sistemas estereotipados
de representação. O ilhamento social precisa ser encarado como um velado
dispositivo de exclusão social. Aqui, em vez de falar de minorias segregadas,
precisamos mencionar as maiorias excluídas.
Repensar o político sob estas condições exige colocar-se diante das
formas de representação simbólica que expressam as propostas de vida em comum. Elas podem ser
democráticas ou não. No primeiro caso, precisamos concebê-las enquanto ritual
de constituição dos objetos de desejo e reconhecimento recíproco de uma
identidade solidária e coletivamente forjada. No segundo caso, nos deparamos
com um ritual que organiza, estereotipada e formalmente, a cena política,
distanciando os homens uns dos outros. Nesta circunstância, os objetos de
desejo se diluem nas proibições culturais, frustrando as possibilidades com que
as diferentes singularidades podem expressar-se. Facilmente pode-se, desta
maneira, sustentar uma visão da interação social que legitima uma visão do
poder que atua sobre as interações sociais, como se estas fossem uma natureza
inerte.
Isto leva à afirmação de uma versão reducionista da prática política e
jurídica, idealizadas como meras tecnologias sociais.
Aceito francamente a proposta de LECHENER, no sentido de que
necessitamos reconstituir o espaço político na sociedade, considerando a
constituição de ações recíprocas e a determinação mútua da subjetividade social
como núcleo central da prática política. Estaria, assim, aberto o caminho para
a formação de múltiplas singularidades e antagônicos objetos de desejo.
Larga tradição concebe a sociedade como uma ordem natural. Desta forma,
a convivência social é apresentada como sendo regida por leis própria,
independentes da história e de suas lutas. Por conseguinte, a sobrevivência da
sociedade dependeria de que seus membros conhecessem e acatassem sua
legalidade. Esta versão mítica da sociedade tende, sobretudo, a neutralizar a
luta dos socialmente excluídos, impondo uma imagem de harmonia para abortar o
surgimento de qualquer figura de divisão ou diferenciação. Assim, o status quo
é posto sob a égide de leis eternas, inevitáveis e imutáveis, que os homens
necessitam obedecer para evitar o caos. Tudo o que surge vinculado à natureza,
ao sentido comum, ao são juízo, ao bem comum, termina sendo uma violência à natureza
ideológica, que intenta promover como "normal" algo que é apenas uma
posição regulada por interesses. Ao supor uma realidade objetiva como horizonte
da ação humana, dá-se de antemão por (de)terminada a finalidade do processo
social e são apagadas retoricamente as diferenças: "homens iguais por natureza".
Indubitavelmente, um trabalho de censura, que revela todo poder das
palavras.
Por outro lado, esta concepção naturalista da sociedade tem fortes
ressonâncias epistemológicas, impondo princípios e crenças teóricas que servem
de suporte a uma triunfante epistemologia do esquecimento. Estamos diante de um
efeito mítico (para supressão da distância entre natureza e história) e
ideológico (por propor uma versão unificadora do mundo). Os destinatários
destes discursos os consomem como se fossem representação autêntica e natural
da realidade social. Trata-se de discursos que estruturam a realidade,
submetem, regulam, e reprimem as relações sociais sob uma aparência mansa,
natural, neutra e despolitizada. É um discurso onde o indivíduo pode
reconhecer-se puro, carregado de deveres e sem contradições. Operando sobre a
base da linguagem natural, vai-se construindo uma visão (ideológica) unitária
do mundo, fundamentada, sobretudo, na imposição de um pensamento externo às
sociedades onde esse tipo de discurso simula estar localizado.
A verdade das ciências do homem termina, desta forma, convertida em um
lugar tópico, que permite a acumulação do poder gerando proibições --
carregadas de componentes neuróticos -- destinados a satisfazer a submissão e
não o desejo. A história destas verdades é a história da dominação: a verdade
como produto persuasivo dos vencedores, ídolos que consumimos como narcóticos.
As verdades convertidas em tabus do político, considerado como uma rede de
micromomentos de produção e reprodução da sociedade.
Os saberes sobre o homem, em tantos discursos vencedores, provocam
efeitos alienantes de persuasão. Estes efeitos estão destinados a neutralizar e
imobilizar: tabus que ritualizam a submissão em vez de serem uma afirmação da
vida coletiva. O mito e o ritual como dispositivos de despolitização da
sociedade.
Para rever esta situação, parece razoável refazer a história das
significações esquecidas. É necessário ir em busca de tudo o que seja
estrangeiro e problemático na existência, perguntar-se se por tudo aquilo que
até agora foi exilado pela moral e pelas ciências da lei. É preciso deixarmos
de ser "crentes" para podermos começar nossas andanças pelo que é
institucionalmente proibido. É preciso pagarmos mal a nossos mestres para
descobrirmos a história escondida pelos homens da ciência, juristas e
filósofos, para descobrirmos que ideal do desejo constitui o simulacro de um
objeto de desejo, teatralizado pela informação erudita.
Dando uma explicação política, as proibições climatizadas pela cultura
oficial, poderemos começar a andar e ser de outro modo: poderemos gerar gestos,
chaves para entender silêncios, para descobrir campos inteiros de uma
experiência esquecida. Desta forma poderemos tentar a recuperação de um
espaço social para o político.
Entendo, para buscar esse objetivo, que o político se constitui e se
conserva em uma permanente luta simbólica contra a produção de uma
subjetividade plasmada por rituais, crenças e mitos de submissão. A sociedade
se repolitiza indo contra os efeitos totêmicos de um fetiche chamado Estado.
Para ganhar essa luta, precisamos contar com outro discurso, uma prática
de significação em permanente estado de estruturação, de ambivalência, para não
se submeter à coerção dos significados unívocos, desdobrando incessantemente o
autorizado, o aceito e o proibido pela instituição social. A formação da
subjetividade é sempre a história de um vencido. Ou seja, significações
produzidas no âmbito do imaginário.
Desta forma, teremos clara consciência de que não poderemos repensar o
político sem um sistema de representações simbólicas que legitimem a existência
dos homens singulares: uma singularidade que seja produto de sua interação
política e não dos homens idealmente concebidos como sujeitos previamente
constituídos
(como resultado de uma concepção mítica do político como ação
fundamentalmente instrumental). O político é prioritariamente expressão
simbólica. Vê-lo como simples ação instrumental ou como emergência exclusiva do
funcionamento econômico é uma forma de abrir caminho às forças de sua negação.
O sentido comum teórico das ciência sociais, suas crenças estereotipadas
e os amos de suas verdades nos acostumaram a refletir acerca da incidência das
determinações sócio-econômicas sobre a política. Entretanto, não permitiram, ou
não facilitaram, que nos acostumássemos a pensar em torno do papel que a
produção social da subjetividade desempenha nesse terreno. Ou seja, não nos
possibilitaram ver, por um lado, que papel desempenham os sistemas de
representação institucionalmente produzidos na formação das estruturas
psíquicas, e por outro lado, como estas se operacionalizam para que
determinados fatos históricos e sociais se desenvolvam e se consolidem.
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Fuente: BuscaLegis.ccj.ufsc.br - REVISTA N.º 24 Setembro de 1992 - p. 36-54.
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