A Fantasia jurídica da igualdade: Democracia e direitos humanos numa pragmática da singularidade. (1992)
- I Parte -
Por Luis Alberto Warat
No recorrer desta sucessão de incidentes reflexivos tentarei armar um caleidoscópio de argumentos semiológicos e psicanalíticos sobre a política, a democracia e sua relação com o totalitarismo. O que tentarei expor pode ser considerado como parte de uma série de (pré)textos universitários que fui confeccionando a partir de meus desejos de explicar, em alguma medida, meu pensamento em torno da política, do poder e sua relações com o aparato psíquico e com as dimensões simbólicas (vistas -- na direção de Lacan -- com uma tentativa de situar o mundo do lado da ficção).
Proponho-me, com este conjunto de considerações preliminares, repensar
as relações entre a política e a democracia, a partir de uma perspectiva
simultaneamente psicanalítica e semiológica, para tentar, com isso, fazer uma
apreciação geral do papel que pode cumprir o espaço político, a democracia e os
movimentos dos direitos humanos numa pragmática da singularidade.
Partirei do pressuposto de que o simbólico é uma dimensão do político e
o político uma dimensão do simbólico. Isto me permitirá afirmar que a política
e a democracia, para uma pragmática da singularidade, precisam ser consideradas
como uma ordem simbólica interdependente. Estaríamos, assim, falando de uma
cena política para a singularidade: a dimensão simbólica dos movimentos de afirmação
da autonomia individual e coletiva.
Sob esta perspectiva a política ficaria caracterizada como o lugar de
interpretação e interrogação do modo pelo qual a sociedade se institui. A
política aparece, assim, relacionada aos modos nos quais historicamente uma sociedade
se interroga sobre suas formas particulares de discriminação do verdadeiro e do
falso, do normal e do patológico, do justo e do injusto, do que para ela será
lícito ou proibido. Em outras palavras, falar de política neste contexto implica
situar-nos interrogativamente num território que nos permita pensar os modos em
que uma sociedade se articularão significativamente o poder, a produção de bens
materiais, a lei, o saber e a personalidade. Observando estas articulações
(considerando estes cinco elementos como dimensões simbólicas) e vendo de que
maneira elas se realizam, podemos tentar diagnosticar as tendências
totalitárias ou democráticas de uma determinada forma de sociedade.
A democracia, como ordem simbólica, precisa de uma particular forma de
articulação dos cinco níveis aludidos.
Essas instâncias necessitam ser relacionadas de forma tal que permitam o
desenvolvimento irrestrito da singularidade.
Para a formação de uma ordem simbólica democrática, o saber e a
personalidade não podem estar alienadamente vinculados aos outros elementos. Eles
devem relacionar-se com os desejos. Eles precisam estar determinados por
relações de afeto.
Em vez de estar fortemente determinado pelo poder e leis do capital, a
democracia demanda a produção de dimensões simbólicas organizadas a partir de
nossos impulsos de vida e nossas necessidades afetivas: a relação significação-desejo,
produziria, privilegiadamente, a articulação simbólica do poder, lei, saber,
bens materiais e personalidade. Estou referindo-me à política como organização
libidinal das significações.
Aponto para um sentido de política referido a um determinado trabalho
que os homens devem fazer sobre as instâncias de significação. Essa atividade
irá definindo e redefinindo, em cada contexto histórico, a prática simbólica da
democracia e o futuro do espaço público como lugar de produção da
singularidade.
Este espaço público, como lugar de produção da política (com ordem
simbólica), precisa da produção de objetos de conhecimento abertos, inacabados,
imprevisíveis, em muitos aspectos previamente impensados, portanto
incontroláveis pelas normas de produção das verdades científicas. Estas não
servem para interrogar as formas cotidianas da sociedade, as experiências
provenientes da convivência.
Com o que foi dito tento sugerir um conceito de política diferente do
proposto pela ciência política: esta está preocupada com a possibilidade de
pensar cientificamente o poder e o Estado; isto é, de ver a política como metadiscurso
epistêmico das relações de poder: um recorte objetivo das instâncias sociais de
onde se manifesta o poder.
Minha proposta faz referência a todos os mecanismos simbólicos que
possibilitam a própria existência da sociedade, a instância na qual se geram os
mecanismos de identificação das relações dos homens entre si e sua localização
no mundo. Neste sentido, a política faria referência genericamente a todas as
dimensões simbólicas da instituição imaginária da sociedade. Este conceito
estaria mais vinculado aos movimentos de aparição e ocultação das significações
que vão produzindo a subjetividade. É a política como instância de uma
sociedade autônoma.
Posta desta forma, a noção de política resulta diretamente comprometida
com a democracia como ordem simbólica. É o conceito de política de acordo com
um programa de democratização da cultura. Este projeto não pode ser realizado
sem a reinstalação do espaço público na sociedade.
Quero indicar, ainda, que o espaço público, para subsistir, nunca pode
perder um permanente sentido inaugural.
Também é preciso ter presente que as formas sociais totalitárias negam o
político enquanto espaço público de mediação de conflitos e elaboração
histórico-coletiva do sentido de ordem na sociedade. A instituição do espaço público
permite a constituição de uma forma social democrática na medida em que coloca
a lei, o poder, o conhecimento e a personalidade num estado de permanente
indeterminação radical. Eles estão sempre postos à prova. Este é o destino do
espaço público.
O espaço público -- fortemente presente na democracia grega, onde a
praça pública era o lugar de encontro, de reunião, de discussão e de ações
políticas -- já não existe como tal. Nesse lugar público os gregos elaboraram
as decisões concernentes ao conjunto da coletividade. As decisões surgiram pela
confrontação de opiniões, e a liberdade pública através do voto. Ali existia
uma comunidade política. O público na democracia grega se referia ao conjunto
da comunidade e, por conseguinte, não era apropriado por especialistas ou
burocratas da lei ou da política, que, situados acima dos cidadãos, se
arrogassem o título de representantes do "bem comum". Na democracia
grega existia um lugar reconhecido como o lugar do político. Esse lugar ganha,
então, a forma de um espaço público vivido e atualizado pela visibilidade, pela
palavra e pela ação de cada cidadão. O processo de identificação da comunidade
consigo mesma se realiza pela presença dos cidadão na praça pública. As identificações
coletivas eram, naquela situação, o produto de uma atividade política conjunta.
O conceito de política referia-se ao que era comum a todos e não ao processo de
formação de um corpo independente de profissionais e administradores que
tomassem o lugar do espaço público, respaldados por um conjunto de representações
idealizantes. Desta forma, a democracia passou a ser uma dimensão simbólica que
legitima a ação profissional e administrativa de um conjunto de relações de
poder.
Desde a revolução francesa começa-se a falar de igualdade de todos os
cidadãos. Esta igualdade determina a submissão de todos frente à lei. Todos têm
direito a que a lei não lhes seja aplicada arbitrariamente. Nada se diz da
igualdade de participação efetiva na formação das leis. Nem do direito de todos
a que sejam respeitadas suas diferenças. Tratar os homens ignorando a diferença
de seus desejos é ignorá-los e submetê-los a certos desejos institucionalmente
triunfantes. Psicanaliticamente falando: ignorar que os outros são diferentes é
aniquilá-los como seres com existência autônoma.
Uma nova forma de hierarquia se estabelece, desta maneira, sob a forma
de uma sociedade individualista e administrativa. Se todos se tornam
juridicamente iguais, eles vêm a ser igualmente dominado por uma instância que
lhes é superior. A uniformidade, a igualização e a homogeneização dos
indivíduos facilita o exercício do poder absoluto em vez de impedi-lo.
Estamos no coração mesmo da concepção juridicista, que dilui todas as
dimensões do exercício institucional do poder na lei. O caráter geral desta é
levantado como garantia, tanto da liberdade como da igualdade. Estamos diante
de uma das crenças matrizes do imaginário liberal, que consegue ver o Estado
como mais além de um poder institucional. Esse caráter geral da lei é, por
outro lado, erigido em seu próprio fundamento e, por conseguinte, como
fundamento, também do Estado. Este é sujeito exterior à sociedade, que encarna
o bem comum e funda sua existência e sua ação racionalizadora no direito.
Esquece-se, com isto, que a igualdade jurídica e formal deixa o
indivíduo totalmente indefeso frente à fria lei do intercâmbio econômico e
frente à proteção, sem controle nem participação, das instituições
governamentais. A tendência que surge é a de indivíduos preocupados por buscar
seu bem-estar material em vez de estarem preocupados com os assuntos políticos
da comunidade. A participação política tende a ficar reduzida a uma busca de
concessões dos que governam em vez de se reivindicar uma efetiva reabertura do
espaço público. Os governos se sentem administradores privilegiados do social,
ignorando e sufocando cada vez mais as possibilidades do espaço público como
lugar deliberativo e decisório. E a democracia termina confundida com a satisfação
das necessidades materiais da população. Não se adverte que também as formas
sociais totalitárias ou autoritárias podem satisfazer com uma extrema
eficiência essas necessidades. A democracia é, então, entendida como a
possibilidade de lutar para que o aparato governamental nos outorgue coisas,
nos dê benefícios, porém não se luta para participar das formas de produção
desses benefícios. As sociedades de beneficências -- qualquer que seja a sua
natureza -- são bastante pouco democráticas, têm a marca aristocrática da
indiferença.
Todo ato de beneficiência sempre foi seu triunfo eleitoral. A
beneficiência sempre esconde atitudes gato-pardistas: são concessões em
conta-gotas, paliativos momentâneos que não servem para forjar uma ação transformadora
e superadora da situação que a beneficiência, aparentemente, pretende reparar.
Um tecido social desta natureza gera uma série de valores e crenças que
mantêm a coesão social, a sociedade unida: é um imaginário constituinte que
torna as relações sociais progressivamente relações entre indivíduos ilhados,
submetidos tanto ao poder das leis de mercado, como ao poder das instituições
governamentais e ao poder das significações identificatórias.
Existe uma igualdade imaginária que, apagando as diferenças entre os
homens, os força a convencionais rituais de comportamentos, formas de
alegrar-se e sofrer totalmente estereotipadas. Desta maneira, a igualdade
termina convertida em um antídoto contra a autonomia.
Creio que a democracia necessita sobretudo de desfazer-se de sua
bandeira igualitária para içar, em substituição, a bandeira da diferença.
Em nome da igualdade elimina-se o direito à diferença. As formas sociais
democráticas necessitam do conhecimento de que todos os homens são diferentes. Os
homens não lutam pela igualdade. Agrupam-se para lutar pelo reconhecimento de
alguma diferença. Usaria para a democracia o lema: autonomia, desigualdade e indeterminação.
A partir destes três elementos podemos pensar em outro tipo de representações
imaginárias comprometidas com o termo democracia.
Estamos pensando na democracia como uma matriz simbólica das relações
sociais. Ela é atualmente dominada pelas concepções juridicistas que criam um
horizonte de representações imaginárias totalmente desvinculadas do tecido
social. Elas se apresentam como mecanismo de instituição da sociedade, como
sociedade heterônoma.
São representações que nos dão uma imagem do homem simultaneamente
apresentado como coisa e como personalidade bem integrada a seu grupo. Ou seja,
a imagem de uma personalidade apta para satisfazer os valores do rendimento e
os valores que o ajustam socialmente. O essencial para este tipo de imaginário
passa pela possibilidade de reduzir o homem a um sistema de regras formais que
permitam calcular e controlar seu futuro.
Em contrapartida, podemos também vislumbrar outra matriz de
significações que organizam nossas representações em torno da democracia como
ordem simbólica, e nos permitam vislumbrar a criação de uma nova ordem de
sociedade.
Inicialmente deveríamos precisar que esta troca de crenças e matrizes
implica uma alteração radical de nossa relação com a significação. Vale dizer,
temos de aceitar que é na própria sociedade que podemos encontrar a origem das
significações por ela criadas. Estou referindo-me à possibilidade de repensar a
sociedade como auto-instituinte de suas significações, intrinsecamente
histórica, capaz de questionar permanentemente suas próprias condições de
existência e reconhecer-se como um lugar de criatividade incontrolável. Ou
seja, uma nova sociedade que possa escapar às condições que determinaram a sua
alienação.
Pensar em outras matrizes, que condensem uma nova dimensão simbólica
para a democracia, implica posicionarmo-nos para criar uma nova forma de
relação dos homens com a instituição e com os outros homens.
Assim, a idéia de autonomia aparece referida à necessidade de que o
homem não aceite ser condicionado por regras que ele mesmo não possa determinar
em função dos fins que ele próprio se propõe ou dos fins que institui em uma
comunicação não alienada com os outros.
Falar, então, de uma ordem simbólico-democrática pressupõe a aceitação
de um espaço público de discussão, de questionamento, de luta, de negociação e
de diálogo. Trata-se de relações entre sujeitos autônomos que se reconhecem
reciprocamente como diferentes, e que podem encontrar um campo de significações
identificatórias a partir de um mútuo respeito de suas diferenças. Um imaginário
democrático não pode excluir, castigar ou culpar a nenhum homem porque senta ou
se comporta de um modo diferente, porque atua de forma discordante com as
pautas unificadas pela instituição social.
Claro que, para existir autonomia e um recíproco reconhecimento das
diferenças, é imprescindível renunciar ao mito de uma sociedade perfeita, na
qual as relações sociais são pacíficas e transparentes, os conflitos e desigualdades
sociais totalmente eliminados e os homens todos bons, fraternos e solidários. Para
que exista autonomia e reconhecimento das diferenças, teremos que aceitar o
caráter inacabado e indeterminável das relações sociais, dado que elas, em cada
instante, se refazem de um modo imprevisível. Temos que nos aceitar como
integrantes de uma sociedade produtora de discursos ambíguos, indeterminados,
de uma sociedade que precisa assumir sua radical criatividade e o caráter
indeterminado de sua história. Temos que nos aceitar formando parte de uma
sociedade que deve deixar de lado seus medos frente às suas divisões e seus
conflitos constituintes.
Nesta perspetiva, a democracia revela como uma matriz simbólica das
relações sociais que permite considerar a sociedade como um espaço público de
debates ilimitados e indeterminados, como um espaço aberto a um devir sem
limites. Isto é, como um espaço de significações que não precisa mais apelar a
um discurso transcendente que garanta a unidade e a identidade orgânica da
sociedade, assim como tampouco seria preciso apelar a uma noção de poder que o
apresente como guardião de uma anelada identidade comum.
Vinculando as dimensões simbólicas da política às da democracia, aparece
a possibilidade de determinar o político como um espaço mediador entre as
manifestações e reivindicações imprevisíveis da sociedade frente ao poder
estatal e jurídico. É o estabelecimento do direito que permite a reivindicação
de direitos até então não determinados. É o político como signo de emergência
do espaço público, como instância de intermediação entre a sociedade civil e o
Estado.
Dentro desta perspetiva, temos que pensar as relações do direito com a
política, as relações (possíveis) do direito com o espaço público. Isto
permitirá pensar sobre a importância do político no processo de produção de novos
direitos. Eles surgem a partir do exercício político dos direitos já
adquiridos. Porque reivindicamos novos direitos é que se criam focos de poder
(desenvolvendo-se micro-revoluções) e, com isso, consolida-se um espaço de
imprevisibilidade desvinculado do controle estatal, na conquista desse novos
direitos. Neste sentido, o espaço da política fica caracterizado como um
território onde os indivíduos implementam suas exigências de novos direitos,
transgredindo os limites do que é estavelmente instituído como jurídico.
Penso que a proposta purificadora de Kelsen deixa de lado este sentido
da política, ignora a dinâmica transformadora que o espaço público exerce sobre
o direito. Por isso, creio que a teoria pura esconde uma proposta totalitária,
na medida que encarna, no plano epistemológico, a negação do espaço público
como instância de mediação dos conflitos. O direito não pode ser uma instância
de ordem simbólico-democrática se seus significados funcionam ideologicamente
sob o amparo de crenças organizadas sobre o signo da inexistência do espaço político.
Fuente: BuscaLegis.ccj.ufsc.br - REVISTA N.º 24 Setembro de 1992 - p. 36-54.
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