A AULA MÁGICA DE LUIS
ALBERTO WARAT:
Genealogia de uma
Pedagogia da Sedução para o Ensino do Direito (I)
Leonel
Severo Rocha[1]
1era.
PARTE
PRÓLOGO
Em
um romance famoso durante a revolução francesa nas masmorras de Paris uma
mulher morria ao dar a luz a um filho: - quem proverá essa criança?
Perguntavam-se todos! Essa sensação de orfandade atingiu a todos nós e marcou
para sempre o imaginário das Faculdades de Direito do Brasil em dezembro de
2010.
1. INTRODUÇÃO
Em 1977, a
Coordenação do Curso de Direito da UFSM, convidou alguns alunos para assistirem
a uma palestra de um professor argentino. Os quatro interessados em Filosofia
do Direito imediatamente compareceram: Antonio Flávio Xavier, Reni Pires, Juan
Carlos Duran e eu. O professor chamava atenção pelo fato de estar vestido, por
baixo de um casaco de veludo marrom, com uma camisa de seda com pequenos orifícios,
os quais, ao nos aproximarmos, percebemos que eram provocados pelas cinzas de
um cigarro que somente era retirado da boca pela substituição de um novo. Porém,
o mais surpreendente era a temática abordada: O Direito e a sua Linguagem. A
base epistemológica era a teoria de Gaston Bachelard e a Semiologia de
Saussure. Hoje, trinta e cinco anos depois, ainda tenho presente em minha
memória esse dia.
Luis
Alberto Warat é um grande pensador que, a partir de um sólido conhecimento do
Direito, transita livremente desde a filosofia, psicanálise, literatura até a
teoria do Direito. Com suas ideias contestadoras e radicais, vindas de lugares
inesperados, marcou profundamente o universo jurídico. Warat sempre foi
Professor de Direito. A sua vida se confunde com a história da crítica do
Direito que caracterizou a pós-graduação brasileira dos anos oitenta, onde
formou muitos juristas que hoje são destaque no cenário nacional. Warat teve
como grande diferencial a capacidade de inspirar pessoas e reunir amigos em
torno de suas ideias, motivação que por si só transformava qualquer encontro em
um espaço de grande afetividade e genialidade.
Em outubro
de 2011, durante o II Congresso da Associação Brasileira de Pesquisadores de
Sociologia do Direito, Abrasd, realizado em Porto Alegre, ministrei palestra em
homenagem a Luis Alberto Warat, intitulada Aula
Mágica[2].
De alguma maneira, entendo que esses significantes atraem no outro a compreensão
da possibilidade de existência de um professor capaz de produzir em seus alunos
a sensação de que eles são protagonistas. Um professor que comunica ao exigir a
abertura do sentido. Não pretende exercer uma postura dominadora e
centralizadora do processo pedagógico, mas uma atitude capaz de proporcionar um
tapete mágico onde os alunos
começassem a assumir um papel mais ativo nessa viagem. Com isso revelou o
segredo para um momento importantíssimo de criação, quando um professor
conseguiria transformar a sala de aula num lugar mágico, onde se criaria algo
que, a princípio, seria impossível. Esse processo pressupõe a afetividade como
um elemento fundamental.
Na constituição
desses espaços é notável a capacidade de Warat em fazer com que todos os seus
alunos se sentissem como sendo prediletos. Como um bom sedutor, todos se
sentiam escolhidos. Uma espécie de Don Juan dos professores, num bom sentido,
ou em todos os sentidos. Embora todos os alunos se sentissem privilegiados, por
acharem terem sido escolhidos por ele, lamento dizer, nem todos eram contemplados.
Esta é a ideia da Aula Mágica. A partir da afetividade todos sentem a
capacidade de participar e construir, desde a sala de aula, um novo mundo.
No
presente texto, assim sendo, farei um breve histórico do pensamento de Luis
Alberto Warat, centrado em uma espécie de gênese do seu pensamento. Pretende-se
realizar, portanto, uma perspectiva de observação possível sobre Warat; uma
visão, que outras pessoas localizadas em outros lugares, talvez tenham percebido
de outra maneira.
Como se
sabe, o Warat é um argentino, ao menos na origem, pois ele brincava dizendo que
era o único latino americano que tinha dupla nacionalidade na América Latina.
Normalmente se escolhe um país europeu para ter dupla nacionalidade, mas ele
escolheu o Brasil por opção, e os baianos estão de parabéns, pois ele dizia que
o lugar em que ele mais se identificava era a Bahia, assumindo abertamente sua
influência e fascínio. Por tudo isto, não existe de maneira nenhuma uma
interpretação oficial de Warat. O que se
pretende fazer aqui é mais um depoimento.
2.
MAIO DE 68: Um Momento Inspirador
A
Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires foi o palco argentino da
formação jurídica de Luis Alberto Warat, inclusive onde ele realizou o seu
Doutorado entre 1969 e 1972. Este período histórico é esclarecedor, e deve ser
levado sociologicamente em consideração, pois, este acontecimento, maio de 68,
coincide com o inicio de seu curso de doutoramento. Nestes anos, emerge na
França, uma revolta cultural que denunciava, sobretudo, a crise da
universidade. Claude Lefort e Edgar Morin chamaram essa quase ruptura de “La Brèche”. Durante o seu doutorado ele
vivenciaria existencialmente esse furacão que derrubou o método de ensino
tradicional no ocidente.
Não é sem
motivo, então, o fato de que muitos dos eventos que nós realizamos, traziam
como temática reflexões sobre Maio de 68. Realmente foi uma cicatriz social
cujo significado, inesgotável, acabou com a legitimidade do ensino tradicional.
Nesse percurso, se colocou os estudantes como foco principal da sociedade, e a
importância do prazer, do desejo e da criatividade na educação. Ou seja, Warat
é alguém que, na América Latina, percebeu imediatamente esse movimento, que
chegaria ao Brasil, como se sabe, muito tempo depois. Claro, um dos motivos
pelos quais existiu certa demora foi porque, nesse período, o pais vivia uma
ditadura militar.
Esse é um
dos motivos chaves para se deixar envolver e acompanhar sem preconceitos a vida
de Warat (e de toda uma geração). O Brasil em 1964 teve uma ditadura militar, e,
posteriormente, a Argentina também sofreria com alguns períodos de
autoritarismo. O fato é que o mundo inteiro estava passando por um movimento, uma
mudança cultural extraordinária, e, Warat percebeu isto com uma rara lucidez
(algo que alguns medíocres perceberam somente anos depois), apesar dos
mecanismos de censura que todos conhecemos. Ele teve a perspicácia e a coragem
de construir, e dar forma, no meio das lavas do vulcão, um pensamento crítico arrasador.
3.
BUENOS AIRES E A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ANALÍTICA
Luis Alberto
Warat durante o seu doutoramento na Universidade de Buenos Aires sofreu forte
influência da Filosofia Analítica. Inicialmente, foi orientado por Ambrosio Gioja, que era um professor
extremamente rigoroso e formalista. Durante a orientação ocorre o seu falecimento,
e Warat passou a ser orientado por Roberto José Vernengo. Os dois professores
orientadores tinham uma postura extremamente distanciada dos alunos, dois
catedráticos, tidos por Warat, como sendo muito esnobes.
Esse tipo
de Professor iria marcar profundamente Warat, que sempre teceu fortes críticas a
esse modelo docente, às vezes ocultas, às vezes mais declaradas. Ele discordava
drasticamente da metodologia de mestres que ministram suas aulas magistralmente,
e exigiam que os alunos apenas seguissem o que eles determinassem.
Nessa
ótica, Warat formularia toda uma proposta pedagógica, que, no começo,
consistiria em uma forma de compreensão e experiência do mundo, na medida em
que ia, dialeticamente, negando os professores mais importante que teve. A
Faculdade de Direito de Buenos Aires, coloca um ponto de partida para entender
Warat: um grande conhecimento de filosofia analítica e do normativismo, na
linha de um autor chamado Hans Kelsen. Embora, em seus estudos, nos últimos
anos de seu doutoramento, inicie o declínio da filosofia analítica, que surge,
principalmente, com as críticas de Alf Ross.
O realismo
jurídico demonstrou que a teoria normativista era insuficiente para explicar o
Direito, pois deixava de lado a sociedade. O marxismo também levantou os
comprometimentos ideológicos da pseudoneutralidade do normativismo. A partir
deste debate, na Argentina, houve um espaço para estudos sobre a linguagem na
linha do segundo Wittgenstein e da Semiologia. Neste contexto, não é por acaso que Warat iria
decidir elaborar a sua tese sobre Semiótica Jurídica[3].
Na época,
devido a forte influência da Filosofia Analítica inglesa em Buenos Aires,
existia uma grande preocupação em publicar textos mais na Inglaterra, do que na
Argentina. Tanto é que existiu um célebre concurso para professor titular da
Universidade de Buenos Aires, no qual Warat participou (e eu presenciei), em
que ele e todos os outros candidatos foram reprovados, porque a banca dizia que
os postulantes não tinham publicações sérias, de forma que, por este motivo, não
considerava nenhum deles como detentor de um currículo suficiente. Na
oportunidade, ajudei Warat a levar para a banca mais de trinta livros de sua
autoria, que não foram devidamente valorizados por tratarem de temáticas
“críticas” do Direito; portanto, não científicas. Em razão disso, o seu
currículo não foi aceito[4].
3.
APROXIMAÇÕES COM AUTORES BRASILEIROS
No início,
a literatura seria o caminho de fuga. Recorrendo a escritores argentinos, como
Cortazar e Borges, Warat procuraria o fantástico. Depois ele se interessaria por
leituras de autores brasileiros, como por exemplo, Mário de Andrade, Oswald de
Andrade e Jorge Amado, que trabalhavam mais questões nacionais. Um livro que
impressionaria Warat seria Macunaíma. Neste sentido, simbolicamente, Warat
começou a agir como tendo um alter ego Macunaíma.
E, desse
modo, vivenciaria dialeticamente um choque entre a sua identidade argentino-judaica
e o fascínio da liberdade de ser um malandro,
algo voltado para uma síntese antropofágica. Estamos assim a um passo do
surrealismo.
4.
TESE DE DOUTORADO E A PREOCUPAÇÃO COM O ENSINO JURÍDICO
A tese de
doutorado waratiana naturalmente seria sobre Semiótica e Direito. A Semiótica
poderia ver vista como uma metodologia crítica do ensino do Direito. Começa a
surgir uma tese muito forte: se o ensino do Direito baseado na analítica é um
ensino conservador e dogmático, talvez aí esteja o problema.
Portanto,
é preciso mudar o ensino e com isso surge a ideia da ALMED - Associação Latino
Americana de Metodologia do Ensino do Direito - uma associação voltada a
crítica da Epistemologia dominante no Direito. Uma teoria que hoje se aproxima
muito daquela do Warat é a de Humberto Maturana. Para este último, criador da
teoria da autopoiese, o centro de toda a comunicação, é a aprendizagem. A questão relevante residiria assim no seguinte ponto:
como aprender? Assim, a metodologia do ensino é o caminho para se repensar a
aprendizagem e, a partir daí, produzir condições de mudança na vida das
pessoas. Esse era o ideal que Warat sempre defendeu, por meio da ALMED.
(Continuará)
(Continuará)
[2]Este texto é em grande parte a
transcrição desta palestra. Em homenagem a Warat usarei o mínimo de citações
necessárias.
[3] O livro “O Direito e sua
Linguagem” publicado em Porto Alegre pela SAFE em 1984, com a nossa
colaboração, resume essa questão.
[4] A obra de Warat é muita extensa.
Entre tantos, sugiro para uma boa iniciação, os seguintes livros: Introdução
Geral ao Direito, 3 volumes, Porto Alegre: SAFE; e a Coleção LAW, 4 volumes,
publicada em Florianópolis pela Fundação Boiteux.
1 comentario:
Substancial e didático
relato do Professor Leonel!
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