5 de enero de 2013

Crônica de um amor verdadeiramente proibido


Um amigo escreveu uma crônica sobre o amor proibido, critiquei-o afirmando que ele apenas reafirmava os lugares permitidos, disse, ainda, ironicamente, que escreveria uma “crônica do amor verdadeiramente proibido”, em que enfatizaria que a proibição não está em campos instituídos, mas na desconstrução de fronteiras...
Crônica de um amor verdadeiramente proibido

José amava Maria, que amava José e João, que amava Maria, que um dia amou João.
            É impossível escrever sobre o amor verdadeiramente proibido, pois o conceito de verdade não comporta a transgressão da proibição aqui exigida. Seria uma contradição em termos, um paradoxo insolúvel. O amor proibido não pode perpassar por caminhos verdadeiros, certos, por fórmulas pré-estabelecidas. É subversão, só existe em ato único e singular, é fluxo, é um devir em que se questiona estereótipos.
            Maria era casada com João, amava-o, mas estava verdadeiramente apaixonada por José. Eram colegas de trabalho já há alguns anos, mas o real encontro tinha ocorrido a pouco mais de um ano em uma daquelas tradicionais mesas de cerveja, chopp e conversa que compartilhavam semanalmente após o trabalho.
Naquele dia específico, bebeu um pouco além do habitual. As piadas de José ficaram mais engraçadas, seu sorriso mais belo, seu olhar mais brilhante. Viu em José uma pessoa que jamais vira antes. Por diversos momentos naquela noite, parou e pensou como não pôde tê-lo notado anteriormente. Como é próprio da paixão, veio subitamente, não na mesma noite, mas no outro dia. Pegou-se pensando em José por diversas vezes, mas, infelizmente, era sábado e na terça-feira seria um feriado. Não via a hora de encontrá-lo novamente.
            É fácil, cômodo pensar o amor proibido a partir de zonas proibidas: o casal lesbiano, a poli-relação, o trans-sexual gay que se apaixona por alguém do mesmo sexo. São relações não aceitas, fora da margem e, exatamente por essa razão, pensar o proibido a partir da proibição reafirma fronteiras, insiste na dicotomia entre o certo e o errado. Um amor proibido não é exclusivo de relações “proibidas”. Como é subversão, pode colocar de ponta-a-cabeça qualquer um.
            Não era fácil para Maria apaixonar-se por José. Tinha trinta anos, sendo oito de casada, sabia que amava profundamente seu marido, não à toa, perdoou-o todas as vezes que ele chegou em casa com o cheiro de perfume feminino, com o colarinho tracejado de batom. Perdoou, ainda, as mensagens e ligações repletas de carinho trocadas com outras mulheres. Todas eram situações que a machucavam profundamente, seu estômago revirava e chorava copiosamente. Nenhuma das vezes foi dada-lhe explicações convincentes, aceitava-as, pois como costumava reafirmar a si mesma: “amo incondicionalmente João”.
            Continuava a amar João e, por essa razão, não entendia o que sentia por José. Queria vê-lo, queria vê-lo logo, logíssimo, neste instante! Esse estado eufórico, em um primeiro momento, não recebeu o nome de paixão. Não conseguia explicar o que era, talvez fosse amizade. “É, é amizade!”, dizia para si mesma. Afirmação que foi tornando-se cada vez mais freqüente, afinal como era possível amar “outro” se também amava seu marido? “Não, não e não. Não há como amar duas pessoas ao mesmo tempo!”.
            Palavras jamais são apenas palavras, são importantes meios para dar vazão e forma à vida. Enunciar também significa adequar-se a algo. Uma simples palavra pode transformar, da noite para o dia, todos os antigos vínculos. Assumir que ama alguém não é fácil nem simples, pois não envolve apenas a entrega aos fluxos e influxos do sentimento. É preciso adequar-se às práticas, aos gestos e às restrições associadas ao amar. É preciso adequar-se à zona permitida, verdadeira e linear do amor. O proibido é transgredir essas zonas de conforto.
            O sentimento de Maria deixou, em meio a um turbilhão de conflitos, de se chamar amizade e, lentamente, foi sendo nomeado de paixão. Passou a ter dúvidas da certeza inconteste do amor que sentia por seu marido. Duvidava das suas antigas certezas e junto com as dúvidas vinham a angústia, o medo, o choro, a felicidade, a infelicidade, mas também a transformação dos gestos, do corpo e do sorriso.
Se antes não se permitia sorrir para José, ou ao menos olhar para seus olhos, agora já deixava que ele tocasse suas mãos. Quanto maior a angústia, mais prolongado era o entrecruzar dos olhos. Se no início guardava uma certa ingenuidade em sua postura, na medida em que foi entendo e renomeando a amizade em paixão, a insinuação tomou conta de seus pequenos atos. Permitia-se entrelaçar os dedos e brincar carinhosamente com as mãos de José.
            Um dia, de súbito, veio a certeza de que estava apaixonada, completamente apaixonada. Estava na condução indo para a casa em um horário inabitual, mesmo para uma sexta-feira à noite. Tinha prolongado a conversa e o chopp com José, até perceberem que todos já haviam partido. Foi embora, mas tudo o que queria era ficar. Na condução, já um pouco embriagada, o que lhe deu força, confessou-se apaixonada.
            Riu, riu e riu. Risadas que logo foram seguidas de pranto, por nada, por tudo, não importava a razão, não tinha qualquer motivação, só desejava chorar...para logo em seguida rir. Em casa, viu-se confrontada com um paradoxo que lhe colocava em xeque. A presença do marido não foi recebida com indiferença e desprezo, como era de se esperar de uma mulher que foi ensinada a amar uma pessoa de cada vez. A certeza da paixão por José e os muitos copos de chopp fizeram-na entregar-se de forma visceral, plena a João. Amou-o como há muito tempo não o amava.
            O amor romântico cobra muito caro. A busca pelo par perfeito que não existe, a idealização de uma relação plena, que também não existe. A limpidez e transparência entre o casal que, igualmente, não existe! É impossível e até pouco desejável ser feliz o tempo todo, amar sem interrupção, ser translúcido como a água, que somente pode alcançar esse estado após despir-se de todas as suas propriedades em um laboratório. O preço de assumir essas cobranças para si é elevado, é inadmitir que a infelicidade, o ódio, o opaco perpassam a vida e são extremamente importantes.
            Pela manhã, Maria sentia-se suja, afinal como deitar com um homem estando apaixonada por outro? Já sóbria, recusou o toque, a aproximação e as insinuações de seu marido. Sabia que não podia continuar com ele, que o casamento não tinha a mesma graça e alegria de oito, sete anos atrás. Entretanto, estranhamente, sentia-se muito triste ao imaginar-se longe de João. Se tinha adquirido uma certeza ao voltar para casa na noite anterior, outra angustia terrível logo foi formada: deveria ela acabar o seu relacionamento e, assim, entregar-se a José?
            As semanas passavam, as cobranças sobre si aumentavam, o relacionamento com João tornava-se cada vez mais indiferente e não se decidia. Em uma sexta-feira, ficou com José. Ao chegar em casa, como uma forma de redimir sua culpa, contou o fato ao seu marido. Decidida, discutiram. Percebeu que João assustou-se quando ela propôs o término do casamento, segurando as lágrimas, ele limitou-se a dizer: “É o que deve ser feito”. Alívio, alívio e alívio era o que Maria sentia. Naquela noite, dormiu em paz consigo.
            Não entendia, mas o sentimento que experimentava era-lhe estranho, tinha certeza da paixão por José, sentia-se verdadeiramente feliz ao seu lado, mas também sofria por João como jamais pensou sofrer na vida. Para Maria a vida seguia, experiências novas ocorriam, mas, por alguns meses, quase um ano, as lembranças reiteradas, repetitivas e sofridas de inúmeros fatos vividos com seu, agora, ex-marido não lhe saiam do horizonte. Perdeu peso, ela e João discutiram incontáveis vezes.
            Ficou com José, reconciliou-se intimamente com seu ex-marido. Não mantinham mais contato, mas a raiva abriu espaço para as recordações dos momentos doces que haviam vivido juntos, sendo capaz de rever e compreender por novos ângulos as experiências difíceis que passaram.
            O amor proibido não pode ser definido, pois não é substancia, é ato. Não está localizado em um território fixo, com linhas bem delimitadas, mas é deslocamento, subversão das linhas estabelecidas, desfazimento de territórios, certezas e construção de novos territórios e horizontes. É busca, é subversão, é transgressão.
Alguns anos depois, reencontrou, casualmente, João em uma praça próxima do novo local de trabalho dela. Assustou-se quando percebeu que ele não apenas a viu como se aproximou lentamente. Ficou impaciente. Tudo se acalmou quando ele disse “oi”, seguido de um sorriso, prontamente correspondidos. Conversaram por alguns minutos, despediram-se e João falou que também estava trabalhando ali por perto.
            Maria foi embora, um pouco mais feliz, um pouco mais viva. De alguma forma tinha reencontrado um João tão especial como aquele que se envolveu há muitos anos atrás. Sorriu sem culpa, quando constatou que seus gestos tinham sido insinuantes. Por alguns instantes, pensou em como seria legal vê-lo novas vezes, senti-lo novamente. Não sabia se o reencontraria, torceu para que sim. Quanto a José, permanecia com ele e contente com a relação. Não pôs isso em questão. Diante do mar de incertezas que repentinamente anuviou em seu horizonte, Maria excitou-se, suspirou e teve uma única certeza: já não era mais a mesma.
Por Eduardo Gonçalves Rocha

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