12 de abril de 2011

Antonin Artaud, "O teatro e seu duplo" - Parte 2

O TEATRO E A CRUELDADE





Perdeu-se uma idéia do teatro. E, na medida em que o teatro se limita a nos fazerpenetrar na intimidade de alguns fantoches e em que transforma o público em voyeur, compreende-se que a elite se afaste dele e que o grosso da massa procure no cinema, no music-hall ou no circo satisfações violentas, cujo teor não a decepciona.

No ponto de desgaste a que chegou nossa sensibilidade, certamente precisamos antes de mais nada de um teatro que nos desperte: nervos e coração.

Os danos do teatro psicológico oriundo de Racine nos desacostumaram da ação violenta e imediata que o teatro deve ter. O cinema, por sua vez, que nos assassina com reflexos, que, filtrado pela máquina, não consegue mais alcançar nossa sensibilidade, mantém-nos há dez anos num entorpecimento ineficaz, no qual parecem soçobrar todas as nossas faculdades.

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Tudo o que age é uma crueldade. É a partir dessa idéia de ação levada ao extremo que o teatro deve se renovar.

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Tudo o que há no amor, no crime, na guerra ou na loucura nos deve ser devolvido pelo teatro, se ele pretende reencontrar sua necessidade.

O amor cotidiano, a ambição pessoal, as agitações diárias só têm valor enquanto reação a essa espécie de terrível lirismo que existe nos Mitos aos quais coletividades imensas aderiram.

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Em suma, acreditamos que há, no que se chama poesia, forças vivas, e que a
imagem de um crime apresentada nas condições teatrais adequadas funciona para o espírito como algo infinitamente mais temível do que o próprio crime, realizado.

Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda sensação verdadeira. Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele os considere de fato como sonhos e não como um decalque da realidade; sob a condição de que eles lhe permitam liberar a liberdade mágica do sonho, que ele só pode reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela crueldade.

(...)

Praticamente, queremos ressuscitar uma idéia do espetáculo total, em que o teatro saiba retomar ao cinema, ao espetáculo de variedades, ao circo e à própria vida aquilo que sempre lhe pertenceu. Esta separação entre o teatro de análise e o mundo plástico parece-nos uma estupidez. Não se separa o corpo do espírito, nem os sentidos da inteligência, sobretudo num domínio em que a fadiga incessantemente renovada dos órgãos precisa ser bruscamente sacudida para reanimar nosso entendimento.

Portanto, por um lado, a massa e a extensão de um espetáculo que se dirige a
todo o organismo; por outro, uma mobilização intensiva de objetos, gestos, signos, utilizados dentro de um espírito novo. A participação reduzida do entendimento leva a uma compressão enérgica do texto; a participação ativa da emoção poética obscura obriga a signos concretos. As palavras pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam; as imagens novas falam, mesmo que feitas com palavras. Mas o espaço atroador de imagens, repleto de sons, também fala, se soubermos de vez em quando arrumar extensões suficientes de espaço mobiliadas de silêncio e imobilidade.

A partir desse princípio, pensamos fazer um espetáculo em que esses meios de ação direta sejam utilizados em sua totalidade; portanto, um espetáculo que não receie ir tão longe quanto necessário na exploração de nossa sensibilidade nervosa, com ritmos, sons, palavras, ressonâncias e trinados, cuja qualidade e surpreendentes mesclas fazem parte de uma técnica que não deve ser divulgada.

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Trata-se, portanto, para o teatro, de criar uma metafísica da palavra, do gesto, da expressão, com vistas a tirá-lo de sua estagnação psicológica e humana. Mas nada disso adiantará se não houver por trás desse esforço uma espécie de tentação metafísica real, um apelo a certas idéias incomuns, cujo destino é exatamente o de não poderem ser limitadas, nem mesmo formalmente esboçadas. Essas idéias, que se referem à Criação, ao Devir, ao Caos, e que são todas de ordem cósmica, fornecem uma primeira noção de um domínio do qual o teatro se desacostumou totalmente. Elas podem criar uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos.

(...)

Mas com um sentido totalmente oriental da expressão, essa linguagem objetiva e concreta do teatro serve para cercar, encerrar órgãos. Ela circula na sensibilidade.

Abandonando as utilizações ocidentais da palavra, ela faz das palavras encantações. Ela impele a voz. Utiliza vibrações e qualidades de voz. Faz ritmos baterem loucamente. Martela sons. Visa exaltar, exacerbar, encantar, deter a sensibilidade. Destaca o sentido de um novo lirismo do gesto, que, por sua precipitação ou sua amplitude no ar, acaba por superar o lirismo das palavras. Rompe enfim a sujeição intelectual à linguagem, dando o sentido de uma intelectualidade nova e mais profunda, que se oculta sob os gestos e sob os signos elevados à dignidade de exorcismos particulares.
 
Todo esse magnetismo e toda essa poesia e esses meios de encantamentos diretos nada seriam se não colocassem o espírito fisicamente no caminho de alguma coisa, se o verdadeiro teatro não pudesse nos dar o sentido de uma criação da qual possuímos apenas uma face e cuja realização completa está em outros planos.

E pouco importa que esses outros planos sejam realmente conquistados pelo espírito, isto é, pela inteligência; isso é diminuí-los e não interessa, não tem sentido. Importa é que, através de meios seguros, a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo.

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