16 de junio de 2009

Os dragões, seus ninhos rizomáticos, Lilith, a Mãe mítica e este Mundo



Terrível a sina dos que duelam com as palavras. A arte de tal guerra inscreve-se, a meu ver, no mesmo átimo em que logos se instala no acontecer do homo sapiens sapiens. Os dragões, por exemplo, são arquétipos desta ancestralidade da espécie humana. Por isto, caro Warat, nossos deslocamentos (que podem ser lidos como desencontros por interlocutores precipitados) são movimentos espiralados que obedecem a leis cósmicas cujo acesso nos é intangível, mas que são por nós, sensitivos, assimilados simplesmente. Terrível talvez, seja, como a condenação de Sísifo, sabermos que somos pontos móveis que se deslocam desde um ponto fixo desde sempre, para sempre.


Erráticos da vida mundana, desprezamos a suposta lógica herdada dos filósofos gregos, aperfeiçoada e sacralizada pela civilização que nos gerou. Quantos modelos/paradigmas nos foram impostos goela abaixo pelos institutos da ordem e do progresso. Tivemos as chances da redenção ofertadas aos adoradores da Palavra Sagrada e, no entanto, nos inscrevemos no sitio onde a Palavra Profana se faz oráculo. Palavra que não se desnuda frente às estruturas lógicas do pensamento cartesiano. Palavra não desvelável, que não se faz revelação nem verdade. Palavra que não salva nem redime. Palavra que nos invade na calada da noite, onde as vozes silentes soam como fantasmagorias, como ruídos inaudíveis só percebidos em momentos de absoluta solidão.


Warat, somos profetas onde as profecias não fazem sentido, avatares, transfigurações só compreensíveis aos jogos amorosos, aos jogos lúdicos, aos jogos sensitivos. Apenas existimos onde o poder não se institui. Quando digo nós, digo uma legião incontável de homines sacri que vivem no estranhamento e do estranhamento, exilados em nosso próprio habitat social e ostentando os guizos impostos pelos detentores do poder, saber lei, que nos denunciam como loucos, marginais, psicóticos, esquizofrênicos, enfim, como lixo inevitável do processo civilizatório.

Mas, uma outra legião imensa e disforme onde foram e são, incluídos em suas fileiras, de épocas em épocas, as prostitutas, os homossexuais, os ciganos, os judeus, os índios, os negros, as mulheres e tantos e tantos outros que foram e muitos ainda o são, excluídos pela Palavra Sagrada, nos acompanham. Genocídios, amigo Warat, cometidos ao longo dos séculos até os nossos dias, limpezas étnicas, mutilações de subjetividades que não correspondem aos formatos humanos usuais e consagrados pelos impérios que aconteceram e ainda acontecem. Por onde ecoam seus gritos e suas suplicas? Quem vê suas mãos voltadas para os céus, tais galhos secos outonais, e que imploram aos deuses por suas vidas? Nestes territórios, creio eu, os dragões foram dizimados, seus ninhos não aconteceram e o ventre de Lilith não os gerou.

Palavras, sagradas ou profanas, produzem redes, teias elaboradas pela violência absoluta que nos remete à escuridão dos calabouços, ou pelo amor absoluto que nos remete à Esperança. Teias que se entrecruzam, que produzem nós górdios impossíveis de serem desatados. Criamos o bem e o mal para recepcionarmos esta ambígua relação que nos constitui, que nos define. Em cada um de nós existe um pêndulo que se movimenta nos dois sentidos, inexoravelmente. O que pode determinar sua maior inclinação para um ou outro lado? Muitos definiriam como o equilíbrio necessário entre Eros e Thanatos. Tantos outros profetizariam dizendo da eterna luta entre as legiões divinas e as hostes demoníacas que apenas findaria com o holocausto, com o fim dos tempos. E nós, o que dizemos? O silencio invade mais ainda esta noite e os gritos ficam cada vez mais inaudíveis. Passa da meia-noite, vou dormir...


Acordo envolvido pelo dia outonal. Chove copiosamente nesta manhã nublada e fria. A umidade penetra na pele e atravessa o corpo. Sensações e mais sensações que agrupadas me oferecem as percepções que estou a narrar. No pátio minhas cadelas vivem simultaneamente este momento, caminham chapinhando as poças d’água acumuladas. Olhamos-nos.


Ouço a voz de Nietzsche - penso-a grave e profunda -, discorrer sobre o tema que levei comigo ao deitar: “E sabeis o que significa para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo no meu espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo, nem fim, uma firme e férrea grandeza de forças que não aumenta e nem diminui, que não se consome, mas apenas se transforma, imutavelmente grande como um todo, uma economia sem gastos nem perdas, mas também sem acréscimo nem ganhos, rodeada pelo “Nada” como suas fronteiras, não transbordando nem esbanjando, nada infinitamente expandido, mas embutido como força determinada num espaço determinado, não em um espaço que fosse “vazio” de alguma forma, mas como força onipresente, como jogo de forças e ondas de força, sendo ao mesmo tempo Um e “Muitos”, aqui acumulado e simultaneamente ali reduzido, um mar de forças que se alteiam e escorrem em si mesmas, eternamente em construção, eternamente retornando em inauditos anos de retorno, com uma enchente e vazante de suas forças, saindo das mais simples para as mais variadas, do mais quieto, hirto, frio para o mais ardente, selvagem, sempre se contradizendo, e depois novamente voltando daquela plenitude para o simples, retornando do jogo de contradição para o prazer do uníssono, afirmado a si mesmo ainda naquela igualdade de seus limites e anos, abençoando a si mesmo como aquilo que tem de retornar eternamente, como um devir que não conhece saciedade nem enfado nem cansaço: esse meu mundo dionisíaco do eterno criar-se, do eterno destruir-se, esse misterioso mundo de prazeres duplos, esse meu Além feito de bem e de mal (grifo meu), sem objetivo se não houver um objetivo na felicidade de circular; sem vontade se um anel não tiver boa vontade consigo mesmo – quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Uma luz também para vós, ó ocultos, fortes, destemidos seres da meia-noite? Este mundo é a Vontade de poder – e nada além disso! E vós mesmos sois essa Vontade de poder – e nada além disso!

Frente os argumentos nietzschianos meus dragões mostram-se e... olhamo-nos.

Albano Marcos Bastos Pêpe

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