16 de enero de 2009

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Da inaudibilidade do grito à inevitabilidade da luta armada
Rita Laura Segato

Como muitos e em meio ao espanto que vai tomando conta da opinião pública, assisto ao insuportável espetáculo do massacre do povo palestino. A exibição da agressão letal pretende impor-nos a certeza de que nada, nenhum esforço, conseguirá interpor-se entre o poder de morte do Estado de Israel e o povo condenado. Esse espetáculo do arbítrio é também o espetáculo da decadência moral e jurídica do Ocidente.

Como tantos por estes dias, tento gritar, mas o grito não se ouve, parece jamais chegar a destino. Grito inaudível, como aquele da eficaz pintura de Edward Munch, que resulta para sempre inolvidável por retratar o grito moderno, o grito insulado na situação de fragmentação existencial que Hannah Arendt magistralmente distinguira da experiência da solidão.

O incrível fenômeno da inaudibilidade do grito indica que mergulhamos sem percebé-lo na incomunicabilidade própria de toda atmosfera totalitária, com seu cerco midiático, com sua língua eufemística, com o encapsulamento dos sujeitos. A grita geral que se condensa em textos, como este, convulsivos, desassossegados, em desvelo, não sai da boca e não alcança seus interlocutores. Não consegue interromper a ação exterminadora dos seus destinatários. A escrita é intransitiva.

Aquela que Ronald Barthes definira e outros consideraram a única forma de expressão legítima da experiência concentracioná ria, única capaz de captar este presente de intempérie extrema, intraduzível bewilderness - seja física para aqueles que, no seu minúsculo e torturado território-lager, morrem sua morte de ferro, dor, fome e frio, ou moral e espiritual, como a de todos nós, incluindo os próprios algozes, em seu aparente júbilo.

Este padecimento incontornável e inconsolável é algum déjà-vu, uma experiência que remete a um passado não longínquo em que vozes também desoladas tentaram se insurgir contra o ferro e fogo do extermínio de outro povo. É indiscutível a semelhança, tanto na ação como na reação desatada, com o evento da invasão do Iraque, que não conseguiram deter os gritos eminentes e assombrosamente inaudíveis - porque inócuos- de autores como Gabriel García Márquez, José Saramago, Gore Vidal, Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Harold Pinter, Susan Sontag, John Le Carré ou Noam Chomsky. Nada conseguiu, naquela ocasião, interromper o avanço da letalidade norte-americana.

Eloqüente fora, naqueles dias ainda próximos, a carta-resposta de Federico Fasano, diretor do jornal La República do Uruguai, ao embaixador norte-americano nesse país, publicada em Separata do jornal em 30 de março de 2003. Ela iluminava, uma a uma, exaustivamente, as numerosas coincidências entre os Estados Unidos pós 11 de setembro de 2001 e o regime da Alemanha nazista. Críticas todas ferozes e convincentes, que pouco significaram frente ao avance do fogo genocida. Vozes otimistas se alçaram para afirmar que nunca a opinião pública mundial alcançara tal nível de lucidez a respeito do poder imperial, que o protesto popular há anos não mostrava uma vitalidade tão grande. Milhões de pessoas foram às ruas para manifestarem- se contra o absurdo.

Nunca, para os analistas, o capital simbólico e o capital moral dos Estados Unidos da América haviam caído a níveis tão baixos. Contudo, se os textos eminentes tivessem podido, como se acreditou, aceder às consciências e sacudi-las, o horror, ontem como hoje, teria sido interrompido. A única e maior diferença entre a irracionalidade contemporânea e a da Alemanha da Shoah é que, hoje, a evidência é exposta, e há o grito da opinião pública frente a essa evidência. Mas o grito, por uma razão que devemos examinar, tornou-se inaudível, e o clamor, surdo. Todas as soberanias foram suspensas e os direitos e recursos de todos os povos foram alienados quando o poder de morte se consagrou lei única, aos olhos do mundo, com a invasão de Iraque e, hoje, com a devastação de Gaza.

Uma mecânica primordial, zoológica e primitiva aflorou e desbancou a gramática inteligível das leis humanas quando não houve limite para o poder exterminador do Norte, agora desdobrado no braço de Israel. O que hoje presenciamos é parte da mesma lição de anomia imperial e a emergência da capacidade bélica letal e genocida de um povo sobre outro como procedimento único. Como isso é possível? Ou, como na epígrafe escolhida por Hannah Arendt, citando David Rosset, como é que "tudo é possível"? E ainda: como representar esse "tudo" das possibilidades, como comunicá-lo e barrá-lo? Como encontrar a palavra eficiente quando a sintaxe que organiza toda narrativa tenta captar o monstro a-gramatical, o mecanismo exclusivo da força bruta, e toca o substrato pétreo do pré-humano, do in-humano, do inenarrável e indescritível?

Vozes de autores de descendência total ou, como eu, parcialmente judia elevam- se uma traz outra sem sucesso tentando essa eficiência denunciatória do papel cumprido pelo Estado de Israel ao mergulhar a Humanidade na barbárie da lei do mais forte. Não poderiam nunca ser Judeus os que rasgassem agora a malha preciosa do tecido humano, quando foi em nome do sofrimento do seu povo que o Ocidente tentou um pacto universal! Mas caem no vazio as repetidas advertências de Norman Finkelstein, Ilan Pappe, Tony Judt, Daniel Baremboim, Juan Gelman, León Rozitchner, Ricardo Forster, Gilad Atzmon, entre tantos outros que não aceitam se identificar com o belicismo anti-palestino.

Parece inevitável, no entanto, que coletividades nacionais de judeus sem qualquer conexão com a postura bélica em questão se tornarão também reféns e vítimas, elas próprias, ao ficar expostas a um julgamento público cada dia mais irado e nem sempre instruído para compreender a distância existente entre elas e os cúmplices do poder imperial que administram o precário Estado de Israel.
Cita-se a carta que Albert Einstein escrevera já em 1929 ao sionista Georg Weismann, fazendo notar a importância de construir uma convivência harmônica com os árabes. Menciona-se que foram judeus sem-estado e sem lealdades nacionais mesquinhas os que prodigaram à Humanidade toda os dons de sua imaginação intelectual fecunda.

Revisam-se páginas de Hannah Arendt, como sua exploração das simplórias entranhas do Mal expostas no julgamento de Eichmann em Jerusalém: nela nos assomamos à afinidade natural entre o projeto nazista da deportação em massa dos judeus - a assim chamada "primeira solução"- e o projeto sionista inaugurado por Theodor Herzl.

Mas todos os apelos e narrativas esbarram numa impossibilidade, que é a própria impossibilidade da representação: O Mal não pode ser representado, porque a narrativa somente pode veicular, comunicar, aquilo que obedece à estrutura que doa sentido, à lógica humana, à racionalidade e à gramaticalidade própria de toda linguagem.

Fora disto, batemos numa porta falsa, emitimos sons fadados ao silêncio. O que dissermos não conseguirá captar o horror dos sucessos, porque os sucessos são tão ininteligíveis como o próprio abismo da morte. Ante a impossibilidade de significar o vazio da lei ("esse nada que nos subjuga" na ordem autoritária burocrática), explica Martin Hopenhayn em seu sutil ensaio sobre o autor de O Castelo, o texto Kafkiano recorre à mimese e à reificação. Nenhuma linguagem referencial, "nenhuma adequação da linguagem à coisa" resultaria eficiente.

Foi esta impossibilidade de representar a suspensão de toda lei o que Schoenberg alegorizou em Um sobrevivente de Varsóvia, obra composta para narrador, coro e orquestra em que se descreve o caminho de um grupo de prisioneiros de um campo de concentração alemão à câmara de gás. A composição textualiza o trajeto dos prisioneiros, mas, ao atingir o momento do horror supremo, Schoenberg cala, sua narrativa se detém para deixar passo à voz coletiva. Escuta-se então não já a voz autoral do compositor, mas o hino judaico Shema Israel com texto em hebraico e partes em alemão: somente o coletivo e ancestral pode substituir o silêncio abissal do inenarrável.

Como se discute na importante coletânea organizada por Saul Friedlander Probing the limits of representation. Nazism and the final solution (Harvard University Press, 1992), o Holocausto - que eu preferiria escrever em plural para incluir, entre outros extermínios, o que hoje testemunhamos - nos coloca frente à questão do inenarrável e do inimaginável, do incomunicável daquilo que, pela monstruosidade, cai fora do domínio do humano e, como tal, evade-se da representação.

A invasão do Iraque e o genocídio de Gaza formam parte do mesmo grupo de eventos que suspendem toda gramática humana, que ignoram todo contrato. Daí a dificuldade dos textos em gerar a consciência necessária para sacudir a ordem genocida. Foi outro judeu notável, George Steiner, quem, no seu ensaio sintomaticamente chamado "pós-escrito" , parte da coletânea Linguagem e silêncio - Ensaios sobre a Crise da Palavra, afirmou: "pois não é coisa certa, de modo algum, que o discurso racional possa lidar com tais questões, estando como estão fora da sintaxe normativa da comunicação humana, no domínio explícito do bestial".

Toda narrativa é ordenamento e, portanto, estetização. Isto representa um limite para a possibilidade de tornar o Mal comunicável. Se a palavra é inócua frente à barbárie, se a retórica dos textos não alcança e nem toca os ouvidos da Besta e não consegue chacoalhar o marasmo das multidões atônitas, não haverá saída: somente a força bruta restará para se opor á força bruta. O ataque de Israel estará fadado a outorgar validade à luta do Hamas. É um teorema sociológico.

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