O discurso edulcorado sobre as virtudes de São Paulo é pródigo em criar as expressões que povoam a mentalidade do paulistano médio e acalentam suas ilusões de grandeza: locomotiva do país, cidade cosmopolita, cidade que nunca dorme. Com elas, vêm as outras certezas que servem apenas para preencher uma existência vazia: aqui estão as melhores opções gastronômicas (quiçá do mundo) e o mais rico acervo arquitetônico do país; aqui (aos que se dispõem a trabalhar, frise-se), não faltam oportunidades.
Non dvcor, dvco (“não sou conduzida, conduzo”). A alegoria extraída do latim para designar um protagonismo está eternizada no brasão paulistano logo abaixo de uma mão encoberta por armadura, e simboliza um desejo imanente de afirmação de poder, entre outros, perante um país que o oprime desde derrota do movimento revolucionário de 1932.
Cidade sensível?
É nesse contexto que se descortina a problemática integração social na capital paulista. O metrô, símbolo da dinamização (incompleta) da mobilidade urbana numa modernidade que se afirma na pré-modernidade que marca outras metrópoles brasileiras, é o locus privilegiado para o observador verificar as contradições. Lá, todas as manhãs, convivem os novos excluídos da megalópole: o jovem trabalhador, sonolento depois de rasgar as bordas da cidade até a estação mais próxima, que se anestesia com a música alta sintonizada num smartphone; a mãe que se esforça em proteger os ouvidos do rebento do barulho ensurdecedor das composições; o homem calvo, com espírito empreendedor e habilidade para trabalhar em equipe, que, imbuído da confiança que seu terno risca de giz provoca, abre mão de sua condição de espoliado para se afirmar como “colaborador” de uma grande corporação. Todos marcados pelos pequenos perrengues do dia-a-dia e por massacrantes processos de violência simbólica. Tudo no mesmo espaço em que há a sagração do sonho de ascensão social (material?) para todos, pela propaganda de uma grande S/A do ensino que afirma poder transformar motoristas de ônibus em gerentes de viação.
Cidade sensível?
A casa do paulistano é, para além de santuário da família (e de todo o entulho autoritário que a permeia, mas que, porque privada, é imune a qualquer intervenção pública, como se lê na História da Vida Privada de Philippe Ariès e Georges Duby), a concretização de seus sonhos e vississitudes. Sobram eletrodomésticos, sobretudo aqueles que mimetizam o andar de cima, faltam livros. A localização importa pouco, bastando estar próxima ao metrô. A “varanda gourmet”- ou o que disso se aproxima – é desejável, assim como as numerosas vagas de garagem, necessárias para os dias de rodízio no trânsito. A profusão de termos anglófonos é igualmente importante: beauty center e baby room, dog walker, car wash, home theather, fitness room, game station, lan house. Tudo o que poderia ser encontrado nas ruas, se essas não fossem o espaço privilegiado da degradação e da subversão, nas palavras de Lúcio Kowarick. Tudo o que a vida em comunidade ofereceria ao homem comum, não fosse a necessidade de fazer disso um elemento diferenciador e uma compensação à vida vazia de seus habitantes.
Pouco importa a especulação imobiliária que empurra os mais pobres para a mais longe. Cidade sensível?
Jane Jacobs afirma que “as cidades grandes são geradoras naturais de diversidade e fecundas incubadoras de novos empreendimentos e ideias de toda espécie (2009, p. 159)”, mas não pode desconhecer que por trás dessa vocação da grande cidade para a inovação existe o antecedente do saneamento social, que, ao eliminar (em parte) o flagelo da habitação inadequada – que ainda existe inclusive quanto à ausência de regularização fundiária – põe a arquitetura e o urbanismo a serviço da neutralização dos conflitos sociais. E não há livraria – que confere uso renovado ao prédio antigo – que faça compensar isso!
Cidade sensível?
São Paulo ainda parece alheia ao debate entre o Apolo da arquitetura-total, da “casa como máquina de morar”de Le Corbusier, e o Dionísio/Pan de Frank Lloyd Wight do saudosismo da integração homem-natureza. Mas que não deixa de dar razão a Vilanova Artigas, quando este denunciava, nos idos dos anos 50, sua vocação para o simulacro de boa arquitetura (importada). E se está alheia a esse debate, o que dizer das relações sociais desenvolvidas no seu interior?
Colaboração Casa Warat SP
Colaboração Casa Warat SP
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