3. Direito e arte
Autores: Eduardo Gonçalves Rocha e Marcia Cristina Puydinger de Fazio
Multiplicam-se, nas Universidades brasileiras, tentativas de relacionar Direito e Arte. Já não é difícil encontrar disciplinas e grupos de pesquisa envolvidos com temas como: Direito e Cinema, Direito e Literatura, Direto e Arte. Desse modo, torna-se necessário refletir sobre esse fato.
Utilizar a Arte de forma instrumental para discutir temas tradicionais da dogmática ou da propedêutica jurídica não é uma prática pedagógica nova nas Universidades. Normalmente faz-se uso do filme, da peça de teatro, da literatura como apoio, como “gatilho inicial”, para desencadear a discussão sobre o tema a ser estudado, apresentando aos alunos problemas ficcionais que os levarão a refletir e a aplicar o conhecimento a uma situação concreta.
Esse não deixa de ser um pequeno avanço para a educação jurídica, uma vez que possibilita ao estudante deslocar-se da tradicional e confortável posição de receptor de informações, para a de produtor de seu próprio conhecimento.15 Todavia, em momento algum questiona os seus pressupostos dogmáticos. Continua afirmando o Direito a partir de uma perspectiva normalizadora e, como já expôs Warat16, não se desvincula do senso-comum teórico dos juristas. Em resumo, talvez promova uma leve fratura na pedagogia bancária tradicional, mas, de forma alguma, proporciona uma ruptura epistemológica.
Outra perspectiva, relacionada ao encontro entre Direito e Arte, consiste em buscar na teoria artística elementos de análise e compreensão do Direito. Talvez o autor mais destacado nesse sentido seja Ronald Dworkin, que se vale de metáforas literárias para explicar o fenômeno jurídico18. Para o autor, o problema central não consiste em criar um método seguro capaz de conduzir os juristas à resposta verdadeira, mas sim refletir sobre qual atitude deve-se assumir diante dos problemas enfrentados pelo Direito, pois serão essas respostas as responsáveis por sua reconstrução e reinvenção. Em outras palavras, o Direito é uma atitude interpretativa, em que cada resposta dada representa um capítulo a mais que se escreve no longo romance social em que estamos imersos.
Ao agir como intérprete/aplicador, o jurista deve também atuar como romancista, reescrevendo da melhor forma possível os capítulos subseqüentes da história compartilhada19. Aproximando a narrativa jurídica da literária, é possível utilizar-se das contribuições teóricas deste campo para realizar uma crítica epistemológica ao Direito.
Jon Elster20 trabalha com esse mesmo enfoque, e vai à teoria artística para analisar a importância das restrições. A Arte, campo marcado pela criatividade, serve como ponto de partida para o autor21 fundamentar a tese de que “menos pode ser mais”, desenvolvendo, assim, sua teoria jurídica-política das restrições. Nos termos dessa teoria, são exatamente os limites impostos pelo Direito e por suas instituições que permitem o enfrentamento das novas questões geradas pela realidade social complexa. Assim, chega-se à conclusão de que os pactos, a racionalidade jurídica, as teorias constitucionais e democráticas, bem como os arranjos institucionais permitem que o Direito não fique estagnado, respondendo sempre às mesmas indagações.
No campo artístico, a teoria das restrições explica que são os limites métricos e rímicos de um poema que permitem seu desenvolvimento criativo. Cada escola tem sua moldura própria, seja na literatura, na pintura ou no cinema, e é isso que lhes autoriza a desenvolverem-se enquanto tradição. No mesmo sentido, o Direito, por exemplo, ao definir procedimentos democráticos para a modificação de leis ordinárias, ou mudanças constitucionais, possibilita que muitos outros problemas sociais sejam enfrentados, pois há restrições iniciais que permitem às discussões prosseguirem.
Elster, a exemplo de Dworkin, utiliza a Arte para fazer uma reflexão epistemológica sobre a teoria jurídica. São contribuições importantes, uma vez que servem para questionar e mostrar a precariedade dos pressupostos da dogmática tradicional, contribuindo para romper com o senso comum teórico que permeia o Direito.
Mas, abordagens mais próximas à adotada pela Casa Warat podem ser encontradas em autores como Martha Nussbaum22 e Richard Rorty23. Ambos reconhecem a Arte como importante instrumento para a promoção e a afirmação de direitos. Procuram romper com o discurso racional cartesiano que separa mente e corpo, chegando à conclusão que garantias jurídicas exigem mais que declarações e imposições normativas.
O discurso jurídico tradicional dirá: todo ser humano tem direito à nacionalidade e à alimentação digna. Porém, filmes como “Trem da vida”, ou “Garapa”, envolverão aqueles que os assistem no drama de apátridas ou de pessoas que conhecem a fome crônica, levando-os, talvez, a superarem o seu contexto existencial e inserirem-se em novas realidades, experimentadas por meio da arte. Assim, autores como Rorty e Nussbaum defendem que conceitos como sensibilidade, imaginação criativa, empatia são indissociáveis da luta pela defesa de direitos.
Richard Rorty critica o fundamento tradicionalmente utilizado para a defesa dos direitos humanos, qual seja, o discurso racionalista de que devemos nos respeitar por sermos sujeitos racionais, iguais e livres. Assegurar direitos exige algo mais que reivindicar a autonomia e a igualdade do outro, pois, se não há lealdade, não há capacidade de sentir o sofrimento alheio. O fundamentalismo da natureza humana é questionado24, surgindo a necessidade de respostas que possam abarcar a sua complexidade, compreendida, agora, a partir da capacidade de pensar, sofrer, ter emoções e sentimentos. Nesses termos, “(...) a capacidade de sentir compaixão em relação à dor de outros” torna-se uma importante fonte criadora e garantidora de direitos.
O condicionamento sentimental, a educação sentimental, são vistos como algo muito mais importante para o desenvolvimento de uma cultura humanista do que a busca pelo conhecimento. É na sensibilização, na possibilidade de ampliar “quem somos nós”, “nosso tipo de gente”, “gente comonós”, que está a aposta de Rorty.26 E a Arte permite a inserção dos indivíduos em “outros mundos”, ampliando-lhes a possibilidade de compreenderem realidades distintas: um romance pode aproximar o branco da escravidão; uma foto demonstrar o horror de uma guerra; um poema, a angústia de um prisioneiro; um filme, as barbaridades ocorridas em uma grande cidade; uma música entoar um canto de liberdade; uma peça de teatro apresentar ao homem a realidade feminina.
Martha Nussbaum, destoando de Rorty, acredita na importância de princípios morais universalizantes, e não admite que eles possam ser substituídos pela imaginação empática28. Para a autora, obrigações morais não podem ser regidas pela empatia, mas, em conformidade com Rorty, acredita que a imaginação literária contribui para que o bem-estar de pessoas que estão longe de nós seja fonte de interesse e atenção. Compreende que as emoções fazem parte da cognição, sendo relevantes para a racionalidade pública. Desse modo, respeitar princípios fundamentais, como dignidade, saúde, não discriminação, etc., pressupõe a capacidade de compartilhar vivências.
Feitas essas considerações, ressalta-se que Richard Rorty e Nussbaum aproximam-se ao reconhecerem a função das emoções na defesa de direitos. O sistema de direitos adquire um ingrediente a mais, pois, para sua preservação torna-se fundamental valorizar e perpetuar algo que está além de estratégias racionais e da capacidade cognoscitivista: a sensibilização. “Quando os livros de conto entram em casa, a economia política corre perigo”.30 Para a autora, a arte ativa a imaginação e a emoção, e nisso está seu potencial explosivo e transgressor.
Por fim, conclui-se que, se de um lado o discurso jurídico-político esvazia o Homem ao universalizá-lo, de outro, o discurso artístico pode servir como contraponto, resgatando o “eterno” do humano.
Continua...
Artigo inicialmente publicado na Revista Direito e Sensibilidade
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