15 de abril de 2011

...entre-nós...

Entre-nós waratianos


Por Rafael A. F. Zanatta


Ontem me ocorreu algo inusitado, uma daquelas coincidências que te deixam com o cabelo em pé e desconfiado da existência de algo maior que nos move e nos conecta, uma força oculta ainda desconhecida por nós.

Recebi um e-mail de um acadêmico de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul dizendo o seguinte: "Caro Rafael Zanatta. Meus parabéns pela divulgação do material sobre a Casa Warat. Sou graduando em direito aqui na cidade de Porto Alegre/RS, e recentemente tive contato com o pensamento jurídico de Luis Alberto Warat. Foi uma lástima não ter ouvido falar antes, assim, agora começo um planejamento sistemático para contribuir com a divulgação de seu conhecimento. "... dispondo a dar a volta em suas contribuições simbólicas sem temor de cari no absurdo". (RESTREPO), 1998, p.36) Por acaso sabes se já existe algum grupo de estudos aqui no Sul?".

Achei bacana ter recebido um e-mail sobre Warat. Provavelmente o colega gaúcho encontrou (através do Google) algum texto aqui no blog escrito na época em que o brilhante pensador argentino faleceu, dezembro de 2010. Escrevi algumas linhas sobre sua crítica ao senso comum teórico dos juristas e reproduzi uma entrevista (concedida a Eduardo Rocha e Marta Gonçalves) que retrata bem a alteridade, loucura e poesia no pensamento waratiano e a "possibilidade de se estabelecer um entre-nós, de relações cartográficas, que possam estabelecer devires de sensibilidade".

Antes de responder o inesperado e-mail dominical, abri minha outra caixa de entrada, do Hotmail. Lá encontrei uma mensagem de uma "monitoranda" do Largo São Francisco - sou monitor de Sociologia Jurídica do 2º ano noturno lá -, Mariana Teresa Galvão, pedindo informações sobre a disciplina.

No final da mensagem, curiosamente, ela escreveu: "Vi, também, que você conhece o Warat! Estou num projeto de construção da Casa Warat SP (temos em Goiás e também em Buenos Aires. Infelizmente, essa última tinha como sustentação o próprio Luis, mas outros seguem seu trabalho maravilhosamente, como o Leopoldo, também argentino que ajudou o Warat até o final da vida dele e leva a CW Buenos Aires). Temos um blog e estamos num ciclo de formação, fazendo leituras...O blog é esse, caso se interesse: http://casawaratsp.blogspot.com".

Ao terminar de ler o recado acima, fiquei perplexo e inquieto. Pensei: "Qual a possibilidade de ler dois e-mails num domingo sobre o mesmo assunto, com tantas conexões ao acaso?". Parecia brincadeira, uma trama suspeitamente bem articulada. Um rapaz do Rio Grande do Sul me manda um e-mail perguntando sobre Luis Alberto Warat e grupos de estudos em sua homenagem. Na mesma tarde, leio um outro e-mail de uma aluna de Direito da USP responsável pela fundação da Casa Warat na capital paulista.

Agi então como um intermediário marcado pelo destino. Prontamente, fiz a conexão virtual Porto Alegre-São Paulo e coloquei os dois pesquisadores em contato.

Depois de algumas horas, recebi outro e-mail de Mariana, surpresa com o ocorrido: "Não é possível! Isso não é coincidência, mas mágica waratiana! Estou boba com os e-mails e já os encaminhei para o resto da CWSP. O Emílio já me mandou um e-mail, vou respondê-lo em seguida e encaminhá-lo também para o pessoal do Sul que eu conheci no último encontro em Buenos Aires, em que tive a inesquecível oportunidade de conhecer o Luis! Foi lá que conheci o autor Warat, pelo próprio Luis Alberto Warat".

Pois é. O domingo foi marcado por uma gostosa coincidência, ou mágica waratiana. E já que se falou tanto de Warat nestas brincadeiras do acaso (destino?), nada mais justo do que compartilhar sua história, suas ideias, sua gramática do desejo. 

Segue abaixo uma tradução-livre de um texto escrito pelo argentino Leopoldo Fidyka, amigo de Luis, publicado no jornal Estado de Direito (editado pela jovem Carmela Grüne).

Foto: Andrea Beheragaray

O inspirado texto é, além de ser um belo relato da convivência com Warat, um convite a todos para caminharem nas trilhas poéticas dos sonhos, da criatividade e dos sentimentos - algo distante do racionalismo científico contemporâneo.


Dragões Waratianos

"A democracia é um devir cultural, multiexpressivo e não somente um conjunto de garantias jurídicas"

"Precisamos entender que viver com plenitude nossas paixões torna a vida uma atividade política criadora"

"Já não basta explicar o mundo, se esse conhecimento não melhorar nossas condições de existência, nos deixa mais criativos e nos aproxima de forma solidária aos outros".

Pequenas pinceladas que retratam fielmente Luis Alberto Warat como um professor de alma e uma alma privilegiada cheia de luz e esperança.

Um apaixonado pelo saber e pela sensibilidade. Um explorador de tempo integral. Conseguiu colocar a afetividade no meio do direito e a partir daí gerar fluxos de cumplicidades com a vida. Sintonizava com intangíveis pouco frequentes na academia, com notas musicais que não foram escritas sobre as pautas do conhecimento instituído, mas que todos nós precisamos descobrir.

Foi um impulsor de muitas disciplinas que marcaram mudanças sem retorno no pensamento jurídico. É interessante ver como significou tanto para pessoas de diferentes latitudes e gerações.

Pessoalmente, três momentos marcaram minha relação com ele: quando foi meu professor em Buenos Aires lá na década de 80, quando me ajudou a sentir que outro direito era possível; o reencontro que tivemos depois de tantos anos, momento onde procurei expressar tudo o que me havia significado; e a criativa etapa da construção da Casa Warat.

A Casa, esse lugar da razão sensível, entendida como um espaço nômade para a expressão e a afetividade, âmbito de ensaio e troca direcionado à melhorar a qualidade de vida e da convivência, tentando pensar o mundo a partir de outros locais que impliquem pontos de fuga da razão cientificista, que tem suas filiais em diferentes cidades do Brasil. Através dela vivenciamos que a combinação de arte, direito e vida é possível e também é muito necessária.

Entre todos os projetos que estávamos realizando em Buenos Aires: cafés filosóficos, cinesofias, talleres, aulas abertas, cabarés, surgiu a ideia de reunir, de toda sua extensa obra, quatro de seus livros para relê-los, discuti-los, revitalizá-los e extrair fragmentos significativos. Assim surgiu "Dragones, purpurinas y esperanzas", uma publicação que acabamos de finalizar e de pronta aparição.

Foi um exercício maravilhoso e memorável, nos juntarmos periodicamente para realizar essa tarefa, onde eu o vi aproximar-se, assombrar-se e lutar com seus próprios textos. Apelava ao fragmento como algo renovador, que evitava estereótipos e lugares comuns.

Ele tinha uma capacidade assombrosa de conectar-se com os outros e uma imaginação maravilhosa e inesgotável, Quixote para muitos, comparo suas pesquisas com a dos Tupi-Guarani, um povo em êxodo, que vivia permanentemente sonhando o Yvymarae´ÿ, a prodigiosa "Terra Sem Males", onde o milho crescia sozinho e os homens eram imortais.

Isso me lembra seu pensamento inquieto, seu nomadismo com fortes raízes, e suas abordagens que nos provocavam para caminharmos permanentemente por territórios de dragões, desconhecidos, mas que paradoxalmente reconhecíamos instantaneamente em nossos corações.

Novos territórios, novos lugares, novos caminhos, espaços de conexões mágicas, nunca quis discípulos senão amigos e companheiros de viagem, para refazermos juntos distintos nós traçados ocasionalmente, direito, saber, arte, desejo e pedagogia que se articulavam e se interligavam permanentemente.

Ele nos dizia: 'Não basta falar aos alunos que é necessário passar com armas e equipamento para o lado dos homens. É preciso dar-lhes uma bengala que permita fazer essa viagem. Mas a bengala não é nossa palavra. Ela está na força vital que podem redescobrir neles mesmos', colocando em prática uma pedagogia mais centrada nos cuidados que na trasmissão de verdades.

Sou grato por sua amizade, por me mostrar um caminho, por me convidar a transitar pelas trilhas poéticas dos sonhos, da criatividade, dos sentimentos e sobretudo por apontar-nos em um mundo com tanta indiferença, uma cartografia para esta "Terra Sem Males".

Nossa missão não é apenas recordá-lo, mas tomar suas bandeiras, regar suas flores e fertilizar a terra, para que atrás de nossos passos novas sementes sigam florescendo sob a luz de suas palavras e o canto de sua poesia.

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