5 de abril de 2011

Antonin Artaud, "O teatro e seu duplo" - Parte 1

O TEATRO E A CULTURA


"Nunca como neste momento, quando é a própria vida que se vai, se falou tanto em civilização e cultura. E há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida.

Antes de retornar à cultura, constato que o mundo tem fome e que não se preocupa com a cultura; e que é de um modo artificial que se pretende dirigir para a cultura pensamentos voltados apenas para a fome.

O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica à da fome.


Acima de tudo precisamos viver e acreditar no que nos faz viver e em que alguma coisa nos faz viver – e aquilo que sai do interior misterioso de nós mesmos não deve perpetuamente voltar sobre nós mesmos numa preocupação grosseiramente digestiva.

Quero dizer que se todos nos importamos com comer imediatamente, importanos ainda mais não desperdiçar apenas na preocupação de comer imediatamente nossa simples força de ter fome.


Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os signos que são a representação dessas coisas.

O que falta, certamente, não são sistemas de pensamento; sua quantidade e suas contradições caracterizam nossa velha cultura européia e francesa; mas quando foi que a vida, a nossa vida, foi afetada por esses sistemas?

Não diria que os sistemas filosóficos sejam coisas para se aplicar direta e imediatamente; mas de duas, uma:
Ou esses sistemas estão em nós e estamos impregnados por eles a ponto de viver deles, e então que importam os livros? ou não estamos impregnados por eles, e nesse caso não mereciam nos fazer viver; e, de todo modo, o que importa que desapareçam?

É preciso insistir na idéia da cultura em ação e que se torna em nós como que um novo órgão, uma espécie de segundo espírito: e a civilização é cultura que se aplica e que rege até nossas ações mais sutis, o espírito presente nas coisas; e é artificial a separação entre a civilização e a cultura, com o emprego de duas palavras para significar uma mesma e idêntica ação.

Julga-se um civilizado pelo modo como se comporta e ele pensa tal como se comporta; mas já quanto à palavra civilizado há confusão; para todo o mundo, um civilizado culto é um homem informado sobre sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signos, em representações.

É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair pensamentos de nossos atos em vez de identificar nossos atos com nossos pensamentos.

Se falta enxofre à nossa vida, ou seja, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar nossos atos e nos perder em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, em vez de sermos impulsionados por eles.



E essa faculdade é exclusivamente humana. Diria mesmo que é uma infecção do humano que nos estraga idéias que deveriam permanecer divinas; pois, longe deacreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem, penso que foi a intervenção milenar do homem que acabou por nos corromper o divino.


Todas as nossas idéias sobre a vida devem ser retomadas numa época em que nada adere mais à vida. E esta penosa cisão é a causa de as coisas se vingarem, e a poesia que não está mais em nós e que não conseguimos mais encontrar nas coisas reaparece de repente, pelo lado mau das coisas; nunca se viram tantos crimes, cuja gratuita estranheza só se explica por nossa impotência para possuir a vida.

Se o teatro é feito para permitir que nossos recalques adquiram vida, uma espécie de poesia atroz expressa-se através dos atos estranhos em que as alterações do fato de viver demonstram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria dirigi-la melhor.

Por mais que exijamos a magia, porém, no fundo temos medo de uma vida que se desenvolvesse inteiramente sob o signo da verdadeira magia.

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