21 de septiembre de 2009

Diálogos entre dos patafísicos

A rosa púrpura do Cairo, os alquimistas, os lobos, os loucos...

- Parte I –

Roteiro: Albano e Warat: dois alquimistas fugidos do Manicômio Judicial de Arkam.

O filme pode ser entendido como um campo de transmutações, que era um dos sonhos dos alquimistas que tentavam a transformação de um elemento químico em outro. E isto pode ocorrer com o corpo físico do espectador transformado em corpo volátil ao confundir-se com os eventos da trama filmica. Lembro-me quando criança, ao assistir a matinê do cinema do bairro, que projetava invariavelmente filmes de caubóis e bandidos (tipo Bill Kid, Buffalo Bill, Zorro), via a mim e as outras crianças saindo da sessão com gestos típicos dos personagens que caminhavam nas ruas do velho oeste, em mimetismos impensados, fruto da magia daquela janela que nos transportava ao faroeste. Era como vestíssemos o terno, o chapéu coco e a bengala de Batt Masterson, com direito a trilha sonora que nos acompanhava ruas a fora (“no velho oeste ele nasceu e entre bravos se criou, seu nome lenda se tornou, Batt Masterson, Batt Masterson).

Desde sempre tivemos e temos túneis do tempo e do espaço que remetem a outros planos do real, onde vivemos intensidades emocionais impossíveis de serem experienciadas no plano do cogito que Descartes e Kant entre outros nos legaram ao inaugurarem o portal da Modernidade.

O cinema continua sendo um portal mágico que atravessamos em busca de emoções nunca vividas, mas que sabemos existir. A sala de projeção, quando nela adentramos, deixa escapar no ar um plano de expectativas que passa a nos envolver e o tempo da sessão rompe com o ritmo cadenciado dos relógios. O tempo e o espaço viram ficções. Qual espaço-tempo? O da duração do filme? O do filme que toma conta dos nossos sentidos e emoções? Que importa! O real se enche de paz (mesmo em filmes de guerra); nos deixa arrebatados pela paixão que nunca ousamos viver; nos lança em aventuras indescritíveis (mas que ali estão, plenas e misteriosas); nos faz viver as epopéias de Alexandre, o Grande e dos astronautas de 2001, uma odisséia no espaço.

Woody Allen em sua Rosa púrpura do Cairo nos convida a participar de um metafilme cujos personagens atravessam planos fílmicos, movidos pela solidão e pela paixão. A solidão de duas pessoas que se olham através das frestas do real, que os coloca em planos aparentemente opostos. O galã do filme projetado (metafilme) e a mocinha solitária (filme) que o assiste insistentemente dezenas de vezes. O galã, que do celulóide projetado se surpreende ao olhar daquela meiga espectadora repetidas vezes, desperta nela, a mocinha, toda a paixão nunca sentida, mas sempre pressentida. Eis o instante mágico: Os dois mundos se fundem momentaneamente. Ato continuo, o galã sai da projeção e vai ao seu encontro. Filme em preto-e-branco, filme colorido, em tons pasteis, fundem-se.

Dois personagens de mundos paralelos são transportados para lugares onde vivenciam, um e outro, a paixão do viver. Ele, enquanto protagonista fílmico de cenas de segundo plano. Ela como protagonista fílmica de cenas de primeiro plano. E nós, espectadores protagonistas das cenas que ali se desenvolvem nas quais também estamos (em que plano?). Enfim, três planos, três reais possíveis. Eis a magia do cinema posto e disposto no mundo-da-vida.

A Modernidade, constitui-se no meu entendimento, como uma construção de cenas fílmicas que são produzidas ao longo dos dois últimos séculos (os dois séculos anteriores foram para montagem dos roteiros “científicos”) A produção e direção ficaram sob a responsabilidade do Estado de Direito, dos cientistas da natureza e dos cientistas sociais; o financiamento e investimentos, o capitalismo burguês; e as falas dos atores sociais sob a supervisão dos lingüistas, lógicos e semiologos. Os atores principais: os cientistas positivistas e os capitães de industria, comércio e comunicação; os personagens secundários e os “extras”, todos nós que compomos a “multidão”, o “povo”, que além das “pontas” que fazemos somos a massa de espectadores que passivamente a tudo assiste. Nascemos, vivemos e morremos, lendo avidamente os “scripts” que nos são entregues de tempos em tempos. Não nos é permitido introduzir falas, menos ainda criar personagens senão os previstos pelas modernas ciências do comportamento. Para tanto, recebemos apoio logístico dos “psis” de plantão e da ingestão de fármacos que nos são prescritos quando não decoramos as falas adequadamente. O lema: “o espetáculo não pode parar”,

Aos coadjuvantes que não conseguem o enquadramento adequado nas tomadas de cena, lhes resta o opróbrio do fracasso e da exclusão social.

Os presídios, as escolas, as universidades e os hospitais psiquiátricos são alguns dos centros de treinamento de tais atores. Ali aprendem os papéis que devem desempenhar durante as filmagens, o que dura toda a vida. Ali também são “cortados” os pretensos atores que, de tempos em tempos podem ou não ser aproveitados. Tais “quase atores”, aqui denominados de excluídos-incluidos, podem ser nomeados para o papeis sempre secundários. Papéis de negros, de índios, de mulheres, de homossexuais, de doentes mentais, de drogados, de marginais, de comunistas, alternam-se ao longo da história dos filmes ocidentais. Assim como de muçulmanos, de coreanos e outros povos considerados primitivos, não civilizados. Enfim o “casting” é amplo e mutável, pois o que move os princípios de inclusão-exclusão são decisões racionais, são ações racionais com respeito a fins, daqueles que dirigem a produção cinematográfica.

Não sei, talvez por isso nós gostemos tanto de cinema; talvez por isso nos identifiquemos com personagens para os quais nunca somos convidados a desempenhar, mas que de algum modo sonhamos em fazê-lo. No entanto, curiosamente nos contentamos em assisti-los e com isso, nos emocionamos e, empaticamente “somos” o que eles são: “ó príncipes meus irmãos...”

O legado da Modernidade traz implícita a execução de tais roteiros. Por isto, Hobbes pontua o tempo histórico anterior ao do Leviatã como o tempo do estado de natureza, quando as pessoas viviam sem “scripts” definidos pela moderna racionalidade. Lembremo-nos do que o mesmo Hobbes afirmava acerca deste estado anterior, nomeado como beligerante, destrutivo, onde “o homem era lobo do homem”. Eis o lobo entrando em cena. Sinônimo de violência primitiva, o lobo demarcava o limite entre o estado de natureza e o estado de direito que se constituía. Lobos, portanto indomáveis, ferozes e associais, não modernos, com papéis inferiores definitivos. São os não-humanos do “script”. Por outro lado, constituído artificialmente (quem era o Leviatã?) o estado racional, era excluído ato contínuo, conforme as regras, o nominado estado de natureza, e com ele, a história da humanidade até o século XVII.

Nada nem ninguém que não correspondesse ao roteiro pré-estabelecido “racionalmente” poderia ter existência própria. Saberes ancestrais que foram construídos a partir de princípios amalgâmicos entre os três reinos naturais (a saber: mineral, vegetal e animal), foram caracterizados como irracionais e sem sentido. Fecha-se o cerco às narrativas não autorizadas pelo sistema saber-poder-lei. As construções conceituais e práticas dos alquimistas, dos magos, das bruxas, dos xamãs, dos feiticeiros foram exiladas para sempre, tal como os poetas o foram da República de Platão. Aos leitores-atores secundários dos “scripts” escolásticos restou a obediência cega e inconteste aos papéis dos novos cidadãos, desprovidos da capacidade de pensar reflexivamente ou intuitivamente sobre os papéis desempenhados, e se pretendiam ou não desempenhá-los.

As filas nas portas dos cinema aumentam... Os gabinetes dos “psis” estão em toda parte... os fármacos controlados, descontrolam...

Fim da primeira tomada (take 1).


Albano Pepe

17 de Julio de 2009

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