23 de diciembre de 2013

A sala é um palco



A sala é um palco


Professores procuram na linguagem teatral uma forma de melhorar suas aulas e descobrem infinitas possibilidades de trabalhar conteúdos diversos com os alunos

Frederico Guimarães

Com uma bengala na mão e um guarda-chuva na outra, o professor de língua portuguesa Júlio César Sbarrais caminha com dificuldade pelos corredores da Escola Estadual Padre Afonso Paschotte, em Mauá, na Grande São Paulo. Enquanto os alunos aguardam o início da aula, ele abre a porta da classe caracterizado da cabeça aos pés: sapatos extravagantes, calças coloridas, maquiagem no rosto e um nariz de palhaço. Fantasia caprichada para arrancar sorrisos dos estudantes da 8ª série do ensino fundamental.

+ Assista a trechos da aula do professor Júlio César Sbarrais
Formado em Letras e Artes Cênicas, Júlio César é o que se pode chamar de "artista-docente", expressão utilizada para denominar educadores que trabalham com a linguagem artística em suas propostas pedagógicas. Desde 2007, o professor recorre ao palhaço "Tinin" para tornar as suas atividades com os alunos mais lúdicas. "Há uma questão pedagógica e didática na linguagem teatral. Apesar de o palhaço ser mudo, ele passa as regras de convivência em sala de aula. Eu uso lousa e giz, mas utilizo o palhaço como uma forma de conquistar o aluno, que tem de dar conta de muita coisa. Esses projetos são válidos no sentido de amenizar a sobrecarga do conteúdo ensinado", afirma o docente. 

Guia prático


 Assim como Júlio César, diversos professores têm aderido ao teatro para ensinar conteúdos de disciplinas como português, história, física e matemática. Segundo a psicóloga e professora de teatro Ana Betina Rugna, 90% dos seus alunos são professores que querem aprender a utilizar a linguagem teatral nas salas de aula. Autora do livro Teatro em sala de aula (Editora Alaúde), Betina elaborou um guia prático para os professores que desejam explorar esses recursos com seus alunos.Em sua experiência com os docentes, Betina observou que os professores sentiam insegurança por não conseguirem transmitir suas ideias de forma clara e criativa.
Para ela, a linguagem teatral pode transformar os professores. "Quando eu trabalho com o professor ele se redescobre, tanto quanto a criança. Assim como as crianças, eles começam de um jeito, mas terminam o curso diferentes, fazendo uma redescoberta do outro e de si mesmos", avalia.

Professor de artes cênicas da Escola Lourenço Castanho, em São Paulo, Pedro Haddad concorda com Betina. "A escola é um lugar essencial para que as crianças tenham o primeiro contato com o teatro, mesmo que não seja unicamente pela disciplina de artes cênicas. A linguagem pode ser utilizada de maneira muito feliz como complemento e incremento das dinâmicas dentro da sala de aula", acredita.

O número de professores formados na área ainda é pequeno, mesmo que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabeleça o ensino da arte como obrigatório. Na maioria das vezes, a utilização do teatro na escola se restringe à disciplina de artes cênicas, quando há, e que nem sempre consegue dialogar com outras matérias. Além disso, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) estabelece metas de qualidade para o desenvolvimento do ensino das crianças na creche e na pré-escola, mas não menciona a utilização do teatro como mecanismo de aprendizagem.


Formação

Betina Rugna explica que tirar o teatro do palco e levá-lo para dentro da sala de aula é simples, mas exige calma e conhecimento da parte do profissional. "O ensino do teatro não é apenas fazer uma peça e pronto. Primeiro, a criança descobre o corpo como ferramenta, depois começa a utilizar linguagens verbais e não verbais, depois trabalha a parte da expressão falada e não falada, depois as duas juntas, até que ela domina essa arte e pode dialogar com outros saberes. Faz parte da vivência. Se você for pensar bem, o teatro é uma grande brincadeira, pois todos nós o utilizamos no dia a dia", diz.

Na opinião dela, não é preciso ser formado na área para se arriscar na linguagem."Os jogos teatrais ajudam a fixar os conteúdos, mas também a desenvolver outras linguagens, tanto verbais, quanto não verbais. Quando o professor fala sobre os sentidos, está ensinando ciências. Quando lê um texto e o interpreta, a criança está trabalhando a criatividade e o vocabulário. O tempo todo o teatro trabalha uma função específica, por meio da linguagem", defende.
Já para o professor de artes cênicas Pedro Haddad, essas atividades podem ajudar no aprendizado, mas dependem de como são usadas em sala de aula. "Por seu caráter coletivo e lúdico, as dinâmicas teatrais proporcionam experiências que promovem o envolvimento das crianças de maneira única. Mas é importante notar que as dinâmicas, por si só, não levam a nada, e é essencial que elas sejam bem conduzidas e acompanhadas de uma reflexão. Para isto o professor deve sim se preparar", salienta.

Assim como ele, alguns profissionais que trabalham com o teatro temem que sua dinâmica nas escolas seja reduzida à condição de suporte para outras disciplinas. "É interessante que o teatro possa mediar e fazer parte desses projetos interdisciplinares, mas há de se ter um pouco de cuidado para que ele não perca aquilo que lhe é valoroso", reitera o professor da ECA da Universidade de São Paulo (USP), Flávio Desgranges.


Interpretando a matemática

Mesmo sem formação teatral, o professor João Batista do Nascimento conseguiu o que poderia parecer impossível: materializar conceitos matemáticos abstratos para crianças da 3ª e 4ª séries.Vestidos de figuras geométricas, os alunos dão vida a personagens como "sujeito quadrado", "triângulo amoroso" e "círculo vicioso" em um espetáculo sobre geometria plana, que chegou a ser divulgado até em Portugal. "A aplicação com as crianças foi simplesmente fenomenal. Elas compreenderam o essencial: estudar matemática e dialogar entre elas por meio desses saberes", diz o professor, que é da Faculdade de Matemática do Instituto de Ciências Exatas e Naturais (Icen) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e realiza esse projeto de extensão há dez anos.


João Batista critica a capacidade dos professores de serem claros no momento da transmissão do conteú­do. "A maior dificuldade para tornar o ensino didático sempre fica do lado do docente, pois já tendo uma ideia preconcebida de como ensinar a matéria, ele acaba resistindo a novas possibilidades criadas pelos alunos e, às vezes, impõe o seu modelo de ensino", analisa.

Para a professora Andrea Gonçalves Poligicchio, que durante dez anos deu aulas na escola da Fundação Bradesco, em Osasco, na Grande São Paulo, o teatro empresta a oralidade que falta à matemática. "Assim, a linguagem simbólica da disciplina não precisa ficar sendo explicada toda hora e tudo ocorre de uma forma natural", defende.
Nas aulas de Andrea, os alunos eram convidados a interpretar alguns textos e, com o passar do tempo, a turma resolveu que o conteúdo poderia ser adaptado em uma peça. "Geralmente nós pegávamos um conto de fadas e fazíamos uma adaptação. Lembro de uma aluna que escreveu Romeu e Julieta e incorporou diversas lições de matemática às falas dos personagens. Os conteúdos eram aprendidos de forma divertida e natural por meio da linguagem teatral", relembra Andrea, que defendeu dissertação de mestrado pela Universidade de São Paulo (USP), sob título "A materialização da narrativa matemática". Andrea atualmente dá aulas no Colégio Santa Cruz, em São Paulo.


Reescrevendo a história

Para o professor Flávio Desgranges, do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP), um método bastante eficaz na hora de transportar o teatro para a sala de aula é o método de Drama, de origem anglo-saxônica, e que pode ser utilizado na disciplina de história, por exemplo.


Flávio conta que teve contato com o método em uma oficina para professores, desenvolvida pelo educador inglês Joe Winston em Bruxelas, na Bélgica. De acordo com ele, o processo se constitui como construção conjunta de uma narrativa teatral, e por isso pode ser entendido como uma forma de arte coletiva, em que professor e alunos assumem as funções de dramaturgos, diretores, atores, espectadores e pesquisadores. "O Drama trabalha muito a partir do texto. Ele pode trazer a possibilidade da luz em cena, ou a possibilidade da inserção de objetos cênicos, ou mesmo uma palavra, ou um gesto. Esse método pode criar jogos de improvisação a partir de jogos teatrais", afirma Flávio.

Sem ter uma ideia preconcebida do Drama, um pesquisador brasileiro desenvolveu uma metodologia que lembra algumas técnicas do método inglês. Inspirado em experiências de educação popular e em movimentos sociais, o professor de história da África da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Waldeci Ferreira Chagas, agregou uma linguagem totalmente diferente para contar a história das populações negras. Ao invés de apostilas, ele propôs utilizar o teatro de bonecos, propiciando que professores e alunos desenvolvessem a confecção dos bonecos, o enredo e o cenário das aulas.

"O livro deve ser o pretexto para as aulas e não o único meio de aprender", afirma Waldeci. "O texto construído e encenado para o teatro de bonecos não é uma cópia do que está no texto do livro didático, mas transcende a interpretação e abordagem que este traz. Nesse aspecto, acredito que a inserção da arte no currículo escolar e o diálogo dela com outras áreas de conhecimento auxiliam no processo de ensino-aprendizagem", explica o pesquisador, que aplicou a metodologia com diversos alunos da UEPB em 2003.
Apesar da iniciativa, os educadores tiveram dificuldades em replicar a proposta com professores de escolas do município de Guarabira, se contentando com algumas apresentações que ocorreram na época em que seu método foi aplicado.
Waldeci garante, entretanto, que com a utilização dos bonecos no cotidiano escolar os alunos saíram da condição de meros ouvintes e passaram a "reescrever" a história, reconstruindo a narrativa das aulas e estreitando a relação entre os estudantes e os professores.

No cangaço
Júlio César Sbarrais, o palhaço "Tinin" do começo do texto, também utiliza outros personagens para ensinar língua portuguesa. Um dos seus preferidos, o cangaceiro Lampião, é frequentemente utilizado nas aulas de literatura de cordel. "Acho interessante trabalhar o lúdico dentro da realidade. Claro que pelo teatro eu consigo brincar com diversas linguagens. Na língua portuguesa, eu posso utilizar estilos musicais e aproveitar as mais variadas formas de estudo para transformar o aprendizado do aluno", explica.

Para que os alunos possam participar de uma forma mais ativa das aulas, Júlio utiliza o livro Lampião e Lancelote, escrito por Fernando Vilela. A partir daí, ele organiza os alunos em uma roda e divide a prosa com os estudantes. Enquanto um interpreta Lampião, o outro vira Lancelote, e as palmas acompanham o ritmo que o professor embala em um pandeiro.
"É uma experiência diferente. Se o professor é criativo, ele cativa a atenção e a matéria fica mais interessante", diz a estudante Ainna Júlia, da 8ª série do ensino fundamental da Escola Estadual Padre Afonso Paschotte, em São Paulo.

"A relação da educação com o teatro mostra que é possível e viá­vel trabalhar todas as disciplinas do currículo escolar. O grande lance do teatro é você fazer desde um espetáculo  até uma apresentação em um espaço simples, dentro da sala de aula", propõe Betina.


Un aporte de Nádia Pinheiro



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