Carnavalização: um fenômeno da cultura popular
Por: Enilda Pacheco
Quando se pensa em carnaval, tem-se a idéia simplista de que ele se resume em mulatas seminuas, enfeitadas com plumas e paetês, que rebolam ao som de sambas enredo, esbanjando traquejo e sensualidade. Também se pensa num conjunto de carros alegóricos exuberantes que atravessam o sambódromo e o preenchem de “efeitos especiais”; ou ainda se lembra dos foliões que, nos clubes ou nas ruas, “pulam” em “trenzinhos”, embalados pelas marchinhas tradicionais. Certamente, esses elementos fazem parte do carnaval (brasileiro, principalmente!), mas há que se considerar que, enquanto manifestação popular, instiga outras possibilidades de significação, para além dessa síntese.
A longa história do carnaval e suas variadas manifestações, em diferentes partes do mundo, permitem pensá-lo como acontecimento simbólico. A esse respeito, e em se tratando daqueles que tomam o carnaval como objeto de estudo, pode-se encontrar dois posicionamentos diversos: de um lado, há a opinião de que o carnaval de hoje sofreu uma certa transformação em relação ao que acontecia antigamente, mas, ainda assim, guarda os fundamentos da festa (medieval e renascentista, principalmente); de outro lado, há a opinião de que o carnaval moderno se modificou tanto que em nada se relaciona com as manifestações de outros tempos, corrompido que foi pelas influências capitalistas e midiáticas.
Resguardados os argumentos dos defensores de cada opinião, vale lembrar que alguns subsídios (teóricos) colaboram para a elucidação desse fenômeno tanto como linguagem e quanto como prática social e cultural, repleta de motivações e sentidos, que vão se reformulando e se ressignificando com o decorrer do tempo. Nesse sentido, convém resgatar os trabalhos de Mikahil Bakhtin sobre carnavalização, que em muito contribuem para sua compreensão como fenômeno cultural ou gênero literário.
Mikhail Bakhtin é um teórico russo bastante estudado no meio acadêmico, mas pouco conhecido fora desse âmbito. Autor de uma obra heterogênea, é considerado um dos maiores pensadores do século XX, porém seus escritos só ficaram conhecidos no Ocidente em meados do século passado, quando ganharam as rodas acadêmicas de discussão em torno do caráter ideológico e dialógico da linguagem. Ocupado que era com os fenômenos da linguagem, Bakhtin ofereceu significativas contribuições para a filosofia, a teoria literária, a lingüística e a antropologia (especialmente nos estudos em torno da cultura), uma vez que seus textos trazem fecundas reflexões sobre variados temas dessas áreas.
Dentre suas produções, cabe destacar dois livros: Problemas da Poética de Dostoievski (publicado em 1929 e com uma segunda edição ampliada em 1963, no Brasil data de 1982) e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (publicado em 1965; a primeira edição no Brasil foi pela Hucitec/Unb em 1987). Na primeira obra, Bakhtin inaugura o conceito de romance polifônico e de carnavalização na literatura a partir da análise inusitada e aprofundada dos escritos de Dostoiévski. Na segunda, Bakhtin toma como objeto de estudo cinco textos de Rabelais (escritor francês do Renascimento), especialmente Gargantua e Pantagruel, dos quais faz uma minuciosa análise temática e de linguagem e aprofunda o conceito de carnavalização e oportuniza reflexões sobre polifonia e dialogismo. O foco central do trabalho de Bakhtin, nesse último livro, é a representação da cultura popular nos escritos de Rabelais, nos quais a carnavalização se manifesta de modo preponderante e pode ser compreendida como uma linguagem carregada de símbolos e alegorias, em que se pontua a divergência entre o oficial e o não-oficial ou, mais propriamente, a ruptura com tudo que é institucionalizado.
Ao debruçar-se sobre aspectos da cultura popular, Bakhtin evidencia que esta se conjuga ao riso, em oposição ao tom sério, característico do período medieval, como uma espécie de emancipação social, em que a vida cotidiana é reconfigurada alegoricamente e tem sua mais intensa manifestação no carnaval. Então, para Bakhtin,
“o núcleo dessa cultura, isto é, o carnaval não é de maneira alguma a forma puramente artística do espetáculo teatral e, de forma geral, não entra no domínio da arte. Ele se situa nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação”. (Bakhtin, 1999: 06)
Essa concepção de Bakhtin abre a possibilidade de aproximação entre o conceito de carnavalização, por ele formulado, e o carnaval como fenômeno próprio da manifestação popular. Na carnavalização, tal como a concebe Bakhtin, pode-se identificar elementos dos ritos carnavalescos da Idade Média e do Renascimento, em que o povo saía às ruas, em procissões, comemorando a liberdade de expressão (pelo menos nesse momento) e a contravenção à ordem imposta (religiosa, principalmente). Nessas festas, predominavam o riso, a alegria, a felicidade, expressamente proibidos pela Igreja, porque representavam os sentimentos torpes, pecaminosos, dignos de punição. Outro aspecto constante dos ritos carnavalescos são as situações de desnudamento e de mascaramento, já que o ato de pôr a máscara significa assumir outra personalidade ou esconder-se, assim como o de tirar a máscara significa mostra-se, exibir-se.
O carnaval - que remonta às festas pagãs da Antiguidade Clássica greco-romana, nas quais se comemorava o renascer da natureza, no equinócio da primavera – representa o mundo às avessas, em que se diluem as fronteiras entre ricos e pobres, misturam-se os desejos, instauram-se dicotomias como entre o sagrado e o profano, o sublime e o vulgar, o belo e o feio.
Bakhtin parte da análise do carnaval (como festa popular) para elucidar o conceito de carnavalização e as especificidades da literatura carnavalizada. Para ele,
“O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um “mundo invertido”. (Bakhtin, 1997: 122-3)
Além disso, a carnavalização, para Bakhtin, caracteriza-se como a celebração do riso, do cômico, e nesse sentido, a paródia é o elemento que mais se aproxima da carnavalização, visto que subverte a ordem pré-estabelecida, pelo deboche, pela sátira da realidade. Nesse sentido, a carnavalização está relacionada ao “aspecto festivo do mundo inteiro, em todos os seus níveis, uma espécie de segunda revelação do mundo através do jogo e do riso” (Bakhtin, 1999, p. 73). Portanto, a paródia compreende justamente esse universo de inversão, de deslocamento, de contradição, de dessacralização, próprio da literatura carnavalizada.
O palco carnavalesco, segundo Bakhtin, é o da vida privada, daquilo que é comum a todos os homens, aquele em que não há regras, tudo é permitido, inclusive o grotesco, o obsceno, ao contrário, justamente, do que apregoa a cultura oficial cerceadora.
Em Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin trata das categorias da carnavalização que são o livre contrato familiar, a excentricidade, as méssalliances [1] e a profanação. Assim, mostra que os personagens carnavalescos, marcados pela excentricidade, são alegóricos, representam tipos determinados, podem ser o que realmente são ou aquilo que desejam ser, porque se valem da estratégia do mascaramento. Segundo Bakhtin, a carnavalização “permite que se revelem e expressem - em forma concreto-sensorial - os aspectos ocultos da natureza humana” (Bakhtin, 1997: 123). Portanto, a carnavalização abarca um conjunto de metamorfoses, de travestimento, de afirmação do cômico, de fantasia e inventividade, e em meio a tudo isso é possível verificar ainda o ritual, tipicamente carnavalesco de coroação e destronamento, no qual se dão as mudanças e transformações.
Em Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin trata das categorias da carnavalização que são o livre contrato familiar, a excentricidade, as méssalliances [1] e a profanação. Assim, mostra que os personagens carnavalescos, marcados pela excentricidade, são alegóricos, representam tipos determinados, podem ser o que realmente são ou aquilo que desejam ser, porque se valem da estratégia do mascaramento. Segundo Bakhtin, a carnavalização “permite que se revelem e expressem - em forma concreto-sensorial - os aspectos ocultos da natureza humana” (Bakhtin, 1997: 123). Portanto, a carnavalização abarca um conjunto de metamorfoses, de travestimento, de afirmação do cômico, de fantasia e inventividade, e em meio a tudo isso é possível verificar ainda o ritual, tipicamente carnavalesco de coroação e destronamento, no qual se dão as mudanças e transformações.
Entende-se, portanto, como carnavalesca, a completa quebra de tabus, a liberação de energias, instintos e desejos, castrados e censurados pela cultura oficial. O interdito dá lugar à transgressão, e é feita a sacralização de elementos profanos. Convém lembrar que a carnavalização, para Bakhtin, é uma categoria literária, do que decorre a compreensão de que toda carnavalização é carnaval (ou apresenta elementos característicos ao fenômeno), mas nem todo carnaval é carnavalizado (no sentido estético do termo), ou seja, o carnaval, tal como o concebemos atualmente, pode carregar alguns resquícios do antigo fenômeno festivo, mas, certamente, em muito se modificou em termos de concepções e mesmo de realização.
Dessa maneira, o estudo de Bakhtin permite compreender de modo mais acurado o sentido da carnavalização tanto como gênero literário, quanto como fenômeno cultural popular. Resguardadas as especificidades de tempo e lugar, a partir da análise que Bakhtin faz da literatura, pode-se encontrar, ainda hoje, algumas características que o caracterizavam na origem, como manifestação popular, prenhe de excentricidades, alegorias, representações míticas e folclóricas, próprias de um dado tempo, povo ou lugar. Entretanto, há que se considerar que o carnaval, tal como surgiu ou como acontecia na Idade Média e no Renascimento, sofreu significativas modificações, uma vez que hoje caracteriza-se mais como espetáculo, exposição de personalidades artísticas, programa imprescindível (de audiência) da mídia televisiva.
Outra característica da carnavalização é o estado do mundo às avessas, e, como mostra Bakhtin, as oposições ganham lugar numa encenação em que se desfazem as hierarquias (a plebe vira elite, vestida com requintadas fantasias), invertem-se os papéis (homem se traveste de mulher e vice-versa) e se celebra a abundância (muita alegria, brilho, enfeite, música, dança) em oposição à escassez cotidiana. Isso tudo em cortejos e procissões que ganhavam os espaços públicos, como ruas e praças. Modernamente, o carnaval na Europa continua a seguir alguns aspectos dessa tradição, principalmente no que diz respeito às máscaras e fantasias com que se enfeita o povo. Como afirma Bakhtin, “Trata-se de uma manifestação específica da categoria carnavalesca de excentricidade, da violação do que é comum e geralmente aceito; é vida deslocada do seu curso habitual” ( Bakhtin, 1997:126).
No Brasil, o carnaval é uma das mais importantes festas populares e, embora bastante modificado, parece que nele se podem encontrar ainda algumas características das manifestações antigas. Dentre elas, destacam-se os cortejos da folia de rua (como os trio-elétricos, que carregam milhares de pessoas que cantam, dançam e bebem numa verdadeira celebração dionisíaca); os bailes em clubes (com concurso de fantasias) e também os desfiles das escolas de samba (grandiosas organizações que combinam povo, fantasias requintadas, carros alegóricos e enredo temático).
Também hoje parece que se resgataram, ao menos nas comemorações brasileiras, os antigos costumes europeus, mais especificamente romanos e franceses, nos quais os bailes de carnaval (ou bailes de máscaras) se transformavam em bacanais, orgias que arrebatavam a nobreza e eram condenadas pela Igreja Católica. O desnudamento (o mínimo de roupa possível), aliado à luxúria, assegurava (e o faz ainda hoje) o cenário propício à liberdade sexual, uma das marcas do carnaval, tanto em tempos primitivos como modernos. Segundo Bakhtin, é o “realismo grotesco”, próprio da carnavalização, que possibilita a conjugação da vida material e corporal, na qual as imagens do corpo, das satisfações carnais (de comida, bebida e sexo) têm lugar de destaque.
Também hoje parece que se resgataram, ao menos nas comemorações brasileiras, os antigos costumes europeus, mais especificamente romanos e franceses, nos quais os bailes de carnaval (ou bailes de máscaras) se transformavam em bacanais, orgias que arrebatavam a nobreza e eram condenadas pela Igreja Católica. O desnudamento (o mínimo de roupa possível), aliado à luxúria, assegurava (e o faz ainda hoje) o cenário propício à liberdade sexual, uma das marcas do carnaval, tanto em tempos primitivos como modernos. Segundo Bakhtin, é o “realismo grotesco”, próprio da carnavalização, que possibilita a conjugação da vida material e corporal, na qual as imagens do corpo, das satisfações carnais (de comida, bebida e sexo) têm lugar de destaque.
Quanto aos desfiles temáticos das escolas de samba, pode-se arriscar dizer que, muitas vezes, configuram-se como paródias de temas, nacionais ou não, históricos, sociais, culturais, uma vez que constroem uma remitologização, a partir da quebra dos padrões estéticos convencionais e paradigmáticos. Exemplo disso são os enredos temáticos das escolas de samba que, não raro, rompem com a figura tradicional do mito, porque elegem como “herói”, ou mesmo como representação divina, homens e mulheres do povo ou, mais propriamente, personalidades artísticas (atores, atrizes, modelos, músicos etc.) que encarnam essas representações míticas no alto do Olimpo mecânico (dos carros alegóricos).
Todo esse conjunto de fatores e características que dão o perfil da comemoração popular traduz uma tal catarse sentimental, que acontece como um ritual de liberação das pulsões reprimidas (durante todo o resto do ano), marcado pelo exagero e pela efemeridade, porque depois tudo volta ao normal, à realidade cotidiana. Ainda assim, o carnaval, como festa popular, permite compreender como o imaginário coletivo atua, paródica e alegoricamente, no cenário das representações (nos sambódromos, principalmente), transformando-se num verdadeiro produto da “sociedade do espetáculo”, como diria Guy Debord.
Ainda resgatando Bakhtin, pode-se dizer que o carnaval, como a representação máxima da carnavalização, conjuga uma pluralidade de vozes tal que o caracteriza, fundamentalmente, como polifônico, dada sua heterogeneidade constitutiva, que relaciona extravagância e simplicidade, cenários exóticos e banais, aspectos eruditos e populares, mesclando uma significativa variedade de estilos e contemplando a junção de pessoas de diferentes classes sociais, etnias e idades. E é isso que sintetiza, por excelência, a estrutura carnavalesca.
É inegável, portanto, que o carnaval, como fenômeno festivo, pode ser melhor compreendido a partir da leitura das obras de Bakhtin, que lançam luz sobre o imaginário popular e sua manifestação, especialmente no que respeita à carnavalização como estilo ou gênero artístico e seus resquícios na festa popular que recorrentemente se celebra no Brasil e em outras partes do mundo.
Nota:
[1] As mésalliances referem-se à extensão do livre contato familiar para fora do seu domínio, que se estende e aproxima elementos antes isolados.
Leituras indicadas:
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/ UnB 1999.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997.
Fuente: Revista Uninter Número 2 – Ano 2006
http://www.grupouninter.com.br
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