Olhar o movimento cuidadoso das cachorras que ficam ao meu lado espreitando meus movimentos, relaxadas e plásticas em seus deslocamentos. As vejo, ora atentas, ora dormitando. Estando, tão simplesmente. Outros humanos não acontecem, não os vejo passar, e em passando, os verei nesta moldura em movimento, entes.
Confundindo-se com o gorjear das aves escuto blues oriundos de qualquer lugar. Deixo-me levar sem perguntas, sem pedir respostas a quem quer que seja. Que apenas meus sentidos aconteçam sem tentar interferir neste momento-lugar que acontece. Resgato esta indiferenciação que a tudo unifica sem classificação. Esqueço o especismo ou o não especismo. Vou deixando de ser-com para ser-como, retirando desta condição de ser sua marca ontológica: sou, pois ente, posso dizê-lo. Não emito o ruído conhecido como fala, tenho apenas a linguagem corporal que se exprime enquanto compartilho o mundo em volta, pensando as imagens em que as sensações acontecem. Sinto o vento que passa, a temperatura envolvente. As cachorras dormitam, os pássaros trinam, o blues acontece.
Há murmúrios no ar. Cada arvore se permite ao murmúrio da passagem das correntes de ar intermináveis. As águas do lago formam pequenas ondas ao ritmo do vento que as acaricia. Penso, pois esta é uma das condições de estar neste momento. O joão-de-barro chega junto ao seu ninho e executa seus movimentos sedutores em direção à fêmea que se aproxima para o acasalamento. Estamos vivos e simplesmente e as coisas acontecem, simplesmente.
Deixar-se levar pelos estímulos criados em nosso entorno, criando vias de entrecruzamentos com o corpo ancestral que habitamos. Assim, a memória enquanto um rio em permanente devir deixará transparecer em suas águas reflexos e imagens não elaborados conscientemente, mas frutos de uma razão sensível que geralmente não acessamos, pois emaranhados por redes de sentido racionalizantes, que estabilizam sensações tornadas percepções disciplinadas, que tão somente apresentam realidades pré-formatadas, verdadeiros Leitos de Procusto.
O todo que apreendo se traduz na linguagem que conheço dos outros humanos, da comunidade que possibilitou minha homonização. Não posso deixar de ser humano e nem quero fazê-lo. Quero tão somente resgatar algo que está inscrito em todas as espécies. Quero resgatar meu convívio com Gaia, um Organismo no qual todos vivemos e de onde retiramos a seiva que alimenta a todos, indistintamente. A evolução da vida planetária só acontece graças a este Organismo-útero que nos inventou, que nos dá sentido, tanto como vida e como morte. A cultura humana enquanto única, só o é graças à bipartição dos seres unicelulares, como todas as formas de vida, o resto é metafísica.
A Palavra é nossa inscrição enquanto humanos. É a forma tomada pelo instinto da espécie. É continuidade do primevo homo sapiens sapiens. É inscrição rupestre que deixa marcas de uma vida nômade e primitiva, como a de tantas espécies que vagaram neste planeta tendo indicadores comuns: sobreviver e reproduzir. Por que não voltar-se para este marco inaugural, que torna indistintos todos os seres vivos? Se nos permitirmos, nossos sentidos conhecem tais conexões existenciais. Por que nos escudamos tão somente nas palavras que designam o que devemos ser, não necessariamente o que podemos ser ou o que queremos ser?
Por que preservar a idéia da compreensão do ser do ente e não a do ente que produz o ser? Sem ontologias nem metafísicas que nos reduzam à maquinas interpretativas tão somente. As nominações, tal como me foram ensinadas funcionam como delimitadoras de sentido. Assim, a Palavra, instinto primordial do humano nos afasta do útero que nos gerou, o negando, o destituindo do sentido original que todas as outras formas de vida existenciam. Não há palavra emancipatória sem o re-estabelecimento de tal vinculo, sem que ele atravesse nossos corpos radicalmente. Só assim poderemos sentir o desiderato de entes que inventaram o ser como um ato de criação único entre as espécies. Os demais entes vivos prescindem desta forma evolutiva, visto que eles já são o que são: mamíferos, repteis, artóprodes, moluscos. Concluo, citando uma frase do Lévi-Strauss numa entrevista concedida no caderno “Mais!” da Folha de São Paulo em 1993, ao tratar das relações do homem com a natureza.
“O que norteia o pensamento ecológico é que ele proclama a vontade de defender solidariamente a natureza e o homem. Defender a natureza para as necessidades e dentro dos interesses do homem. Estou convencido de que as coisas são profundamente contraditórias. Se tivesse que tomar posições ecológicas, diria que o que me interessa são as plantas e os animais - e danem-se os homens. É óbvio que se trata de uma posição indefensável. Por isso, guardo-a para mim”.
Albano Pêpe
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