12 de agosto de 2009

Alteru: o outro, um eu entre dois.


Derrida, ao pensar na troca de olhares – por ele assim nominado aquele momento -, entre ele e seu gato, manifestou, prima facie, ao ver-se despido diante do felino, sentimentos de pudor, de vergonha, de vergonha de ter vergonha frente sua nudez momentânea. E, o gato, nunca despido, pois desde sempre desprovido do sentido da nudez tal como Derrida se vê, o olha, sem que seus olhos e seu corpo nada manifestem que possa ser descritível. Derrida afirma que o olhar lançado pelo gato trás consigo um ponto de vista sobre ele, ali, nu e envergonhado. “O ponto de vista do outro absoluto, e nada me terá feito pensar tanto sobre esta alteridade absoluta do vizinho ou do próximo quanto os momentos em que eu me vejo visto nu sob o olhar de um gato”.

Em um desses textos-instantâneos que tenho recebido ultimamente, este, nomeado: “Warat entre Albano y los complices rizomaticos”, o autor, Luis Alberto Warat, traz à cena o tema do “outro”, do que pode ser dito como alteridade, mas que ele prefere chamar de “otredad”, face uma nova dimensão que o autor coloca: “mi yo efectivo entre dos efectos ajenos”. Em narrativa anterior, coloquei o que poderia entender da sua opção semântica me remetendo ao termo latino alteru, que pode ser entendido como “o outro entre dois”. Em seu texto, ele afirma: “albano, llegasta al alma de mia Idea de la otredad”. Até então “tudo continuava como dantes no reino de Abrantes”, como dizia um narrador-ancestral. Mas, para este ensandecido bruxo-pensador, tal aprovação era apenas o início de mais uma de suas tempestades cerebrais.

E eu, humilde narrador dos acontecimentos, procuro agora, inspirado, espero, pelas três musas (Mélete, Mnéme eAoide), filhas de Zeus com Mnemosyne, que tanto inspiraram os antigos narradores gregos, fazer o relato das narrativas do filósofo-poeta que mergulha nas águas subterrâneas de Hades, que guardam a memória e o esquecimento, em busca de novas significações do que seja esta “otredad”.

Ao retornar à superfície, refletes sobre este “eu entre dois que é um múltiplo ao infinito de si mesmo”. Warat, neste momento fico atento à tua narrativa, nos interstícios da reflexão que me permites partilhar, para desta forma dialogar e também poder cometer diatribes (também nos dois sentidos possíveis). Kant, em sua Antropologia Prática (manuscrito de 1785) afirmava que por natureza somos animais insociáveis e que no estado de natureza levado pelo temor consideraríamos como inimigo a qualquer estranho. No entanto, a Necessidade, fez com que através desta mesma natureza também racional, evoluíssemos. Conforme ele mesmo relata: “Las dispociones naturales se encaminan hacia el dsarrollo de nuestros talentos atraves de:1 )la cultura,2) la civilización, y 3) la moralización”.

Daí, a ilação que me permito: o animal denominado humano é fruto de uma dolorosa evolução que se dá contra o desejante primitivo desta espécie que somos. O próprio Kant nos dá uma pista interessante. Diz ele: “El mal se origina em el seno del antagonismo de humanidad y animalidad, esto es, del conflito que las disposiciones naturales, fisicas mantienen com las morales”. Em Kant, os afetos não têm inscrição constitutiva na natureza humana. E suas disposições naturais para o bem, só emergem face “los infortúnios que inevitablemente se hallan insertos em el destino del hombre constituyen el aguijón que debe estimular sus prácticas del bien”. Por isto não é difícil entender porque ele, assim como os modernos, preferiu tal Ulisses, deixar-se prender no obelisco da Episteme, da Hermenêutica, das críticas da razão pura, da razão prática e do juízo, para assim não ceder ao canto das sereias que o convidariam a preservar também sua condição animal, carnal e desejante.

Compartilhas caro amigo, assim o creio, com o que te relato visto que afirmas: “não somos animais racionais, somos animais em devir logosensível, marcados pelo impacto dos outros devires que nos entrecruzam constantemente, sem nos dar tréguas”.Esta é encruzilhada em que a humanidade se colocou. Entre a espécie humana, enquanto uma das formas da natureza animal assim como as demais espécies também o são, mantidas suas diferenças evolucionais e, a espécie humana enquanto única portadora de um artefato denominado de Razão. Matriz do poder-saber-lei; do poder que se pretende soberano sobre todas as formas de vida universalmente existentes. Tal bifurcação se constitui no legado sobre o qual nos debruçamos neste momento e desde sempre.

A nomeada Modernidade Ocidental definiu o humano como seu o único legatário diante da supremacia da Razão sobre a Vida. Mas, contrariamente insistes que ao se falar deste humano, o fazes dizendo que ele nada mais é que uma ficção: “não existe o indivíduo. O homem, o sujeito (individual ou coletivo) não é mais que uma fantasia organizativa”. Tua narrativa nos leva para a idéia de uma ficção, nomeada como homem, capaz de produzir novas ficções, novos outros e assim nos remetes à compreensão da “otredad”, de tudo aquilo que não somos ou, que dizemos não ser. Fazes desta feita, com que os véus que encobrem o animal racional, comecem a cair um por um, desnudando o único animal que se veste por não suportar sua nudez. Sem sua armadura hermenêutica – “O consciente (homem) só existe como hermenêutica” –, este ser ambíguo dotado de razão e instinto, que somos nós, coloca-se, segundo tuas palavras, em mais uma encruzilhada, a da “relação entre a animalidade carnal e a percepção dos afetos”. Tal afirmação aponta o grande vazio (pretensamente preenchido pelos discursos epistêmicos) existenciado por nós, “analfabetos afetivos (...), sobretudo de sentir o outro, ou de imaginar como o outro deve nos sentir”.

Creio, bravo narrador, que nos colocas no limiar da resposta possível à nossa condição de mônadas, impossibilitados pela própria natureza de nos relacionarmos uns com os outros, mas desprovidos também da completude monádica que se realizaria na enteléquia - conforme Aristóteles -, ou seja, sem a capacidade de nos transformarmos ou de nos criarmos em seres que se constituíssem uns com os outros em imagens e semelhanças de si mesmos. Como navegador ousado que és, como legítimo argonauta que mostras ser, deixa-nos na expectativa de outros relatos, de outras viagens, no enfrentamento das procelas geradas pelos mares da Modernidade.

Finalizo, assim pensando: no meu entendimento, Kant foi dos grandes arautos da Modernidade. Será Warat o arauto do ethos (enquanto costume e hábito) produtor do reconhecimento da otredad? Será que o Derrida foi, através da herança da Palavra, o arauto do animot? Quem é afinal este animal que logo sou?


Albano Pêpe, escrivinhador de narrativas.

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